Em julho de 2017, um artigo do jornal britânico The Guardian deu vida a uma discussão que reverbera até hoje quando o assunto é cinema de terror: será que estamos assistindo a uma verdadeira revolução no gênero? Assinado pelo jornalista Steve Rose, a tese sugere que as mais recentes produções estariam introduzindo uma nova espécie de horror nas salas de cinema, “substituindo os jump scares” – técnica que utiliza recursos como a mudança abrupta de imagem com um som alto e assustador no intuito de provocar sustos – “pelo pavor existencial”.
Para ilustrar o que chama de Cinema de Pós-Terror, o autor cita filmes como Sombras da Vida (2017), de David Lowery, Ao Cair da Noite (2017), de Trey Edward Shults, e Corra! (2017), de Jordan Peele, que se diferenciariam de subgêneros como o slasher por tratar de temas mais aprofundados. Para Max Valarezo, criador do canal EntrePlanos no Youtube, no entanto, a ideia de um Pós-Terror indica uma visão elitista, que busca a dissociação do rótulo de terror para conquistar mais relevância. “Prefiro ver esses filmes como filmes de terror e ponto”, afirmou o youtuber durante a última edição do Cinema da Vela no 45º Festival Sesc Melhores Filmes, realizado na terça-feira (30).
Além de Max, o debate sobre a polêmica do Cinema de Pós-Terror contou com participação de Gabriela Amaral, diretora de O Animal Cordial e A Sombra do Pai – que estreia nesta quinta-feira (2) –, Sérgio Silva, assistente de direção de produções como As Boas Maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra, e Quando Eu Era Vivo, de Marco Dutra (2014), e mediação da jornalista e documentarista Flavia Guerra.
Retrato do pós-moderno
Segundo Gabriela Amaral, a existência do termo “Pós-Terror” é, ao mesmo tempo, positiva e negativa. Por um lado, a alcunha aponta um sentimento comum do nosso tempo e a forma como nos organizamos em torno das histórias. “A gente vive um momento de incerteza global”, destacou. Por outra perspectiva, porém, a expressão pode estimular o público a rejeitar os demais filmes do gênero, o que seria injusto com as obras que criaram os cânones do horror. “As boas narrativas são sobre personagens e não sobre estrutura”.
Concordando com a afirmação de Gabriela, Sérgio Silva reiterou que uma característica comum entre os filmes classificados como Pós-Terror investem em um estudo profundo de seus personagens. Para ele, as películas que se encaixam neste grupo são aquelas que, embora tentem expor a audiência à sensação de medo e angústia, também procuram suprir as demandas formais dos festivais e transcender questões coletivas ligadas a críticas sociais.”[O Cinema de Pós-Terror] tem a ver com este momento em que as pessoas que participam das lutas identitárias estão não só fazendo filmes de terror como fazendo filmes”, apontou.
De acordo com Flavia Guerra, os filmes de terror, assim como todo o cinema fantástico, tem o potencial de retratar nossos tempos porque desvendam os medos que fazem parte do inconsciente coletivo. Evocando filmes como Tio Boonmee, que Pode Recordar suas Vidas Passadas (2011), de Apichatpong Weerasethakul, e suas relações com o imaginário cultural e a situação política da Tailândia, a jornalista acrescentou que o papel do Pós-Terror seria justamente o de dar conta das questões do contexto pós-moderno. “O mundo pós-moderno é muito complexo”.
Território de experimentação
Gabriela descobriu o gosto pelas narrativas de suspense e horror ainda muito cedo, a partir dos filmes das locadoras de bairro e dos livros de autores como Stephen King, Sidney Sheldon e Agatha Christie. A diretora contou que foi nessa época que começou a enxergar a realidade pelo ponto de vista da ansiedade e do medo: “é o tipo de gênero que me dá alegria no processo de criação”, revelou, ressaltando a preferência pelo slasher como estilo que adota o grafismo da violência para explorar o lado impulsivo dos nossos atos.
A inspiração para O Animal Cordial, inclusive, surgiu do desejo de representar essa necessidade de se sentir vivo e de exibir nas telas personagens que erram, artifícios que serviram como base para as tragédias gregas há centenas de anos. “A sociedade precisa desse tipo de narrativa porque é uma válvula de escape”, afirmou.
Sérgio defendeu que, no caso do Brasil, só a possibilidade de fazer filmes de terror fora do universo norte-americano já significa uma forma de subversão do gênero. Para ele, que considera a produção brasileira ainda muito devedora do legado de José Mojica, o eterno Zé do Caixão, essa condição permite que o cinema de terror nacional se aproxime de vários estilos e vertentes. “Temos que nos aproveitar deste território livre e testar de tudo”.
Na opinião de Max, o crescimento no número de mulheres realizadoras, por exemplo, é um dado que explica essa maior diversidade de olhares e histórias de horror produzidas no país. Para o youtuber, O Animal Cordial e As Boas Maneiras por si só já dão uma ideia de como somos capazes de criar representações totalmente originais dentro da esfera do terror. “É incrível ver como essas vozes podem trazer elementos completamente diferentes”, comemorou.