“Três Anúncios para um Crime” e “A Forma da Água”: a saga do anti-herói e a força do cinema fantástico

A safra de produções da temporada do Oscar 2018 foi bastante variada. Entre os indicados para a categoria de Melhor Filme, por exemplo, a premiação incluiu desde narrativas mais clássicas, como o biográfico O Destino de Uma Nação, de Joe Wright, e o filme de guerra Dunkirk, de Christopher Nolan, até histórias que não se encaixavam nos padrões de Hollywood, como no romance gay de Me Chame Pelo Seu Nome, de Luca Guadagnino, e no terror recheado de questões políticas de Corra!, de Jordan Peele.

No meio desta diversidade, dois títulos se destacaram: A Forma da Água, de Guillermo Del Toro, e Três Anúncios para um Crime, de Martin McDonagh, levaram, nesta ordem, quatro e dois dos principais troféus da noite.

Para Guilherme Genestreti, repórter da Folha de S. Paulo e autor do blog “Sem Legenda”, Três Anúncios para um Crime é, sobretudo, um bom representante da onda de produções que refletem sobre o ressentimento do americano branco comum. Outro ponto forte do filme são as grandes interpretações –  no Oscar, o longa ganhou os prêmios de Melhor Atriz para Frances McDormand e de Melhor Ator Coadjuvante para Sam Rockwell. “Dentre todos os que competiam naquele ano, Três Anúncios era o que mais se amparava em bons atores, o que é um elemento que só comprova a sua relevância”, afirma.

No caso de A Forma da Água, a jornalista e mestre em Ficção Científica Cláudia Fusco explica que são muitas as razões pelas quais a evidência do filme representou um avanço no Oscar 2018. A primeira delas seria a entrega da estatueta ao trabalho do diretor mexicano Guillermo Del Toro, que embora esteja muito imerso no universo hollywoodiano, traz à luz a importância de narrativas vindas do resto do mundo neste mercado que é tão anglófono. “A Forma da Água também é uma história em que o feminino é mostrado sob diversos aspectos interessantes, além do paralelo humanidade versus monstruosidade, que é um clássico de Del Toro”, defende Cláudia.

Selecionados para a programação do 45º Festival Sesc Melhores Filmes, Três Anúncios para um Crime e A Forma da Água serão exibidos no CineSesc em duas sessões únicas e gratuitas nos dias 28 e 29 de abril, respectivamente, às 21 horas. Os ingressos para cada sessão serão distribuídos uma hora antes na bilheteria da unidade.

“A dignidade de volta aos filmes”

Lançado menos de um ano depois da posse do presidente norte-americano Donald Trump,  Três Anúncios para um Crime trata do rancor inculcado no americano comum, seus eleitores típicos, movidos em grande parte pelo sentimento de ira, de desconfiança em relação ao outro e de desprezo paranóico em relação às instituições do país. Embora não faça nenhuma menção específica ao tema, o filme revela as atitudes de Mildred Hayes que, inconformada com a ineficácia da polícia em encontrar o culpado pelo assassinato de sua filha, passa por cima dos meios oficiais e parte para agir por conta própria, o que acaba por contaminar as pessoas ao seu redor. “É, portanto, um filme sobre fúria lançado justamente quando o mundo estava intrigado com o ódio do americano comum”, comenta Guilherme.

Segundo o jornalista, outro trunfo da obra pode ser observado no fato de que ela não se apoia em personagens 100% agradáveis. “Três Anúncios não tem esse medo de construir um herói que seja imperfeito ou que desperte antipatia do público”, diz. Neste sentido, Guilherme aponta que o filme se alinha à proposta das séries de TV, que tomaram a dianteira em termos de narrativa, propondo histórias com mais nuances e personagens mais complexos. “Três Anúncios abre uma brecha e traz a dignidade de volta aos filmes”.

Apesar dos diversos aspectos positivos, o longa de McDonagh não ficou livre de críticas e polêmicas. Logo após sua estreia, Três Anúncios foi acusado de racismo por conta do desfecho do personagem de Sam Rockwell, um policial que espancou um prisioneiro negro na cadeia e, mesmo sem ter feito nada nesse sentido, é redimido pela trama. Para Guilherme, a acusação procede e se torna ainda mais relevante porque vivemos tempos em que as minorias estão mais combativas e vigilantes quanto à forma como são tratadas na tela. “Acho que nesse aspecto, o filme pesa, se equivoca”, declara.

Do imaginário para o real

Símbolos são um forte do cinema de Guillermo Del Toro e estão presentes de inúmeras formas em A Forma da Água. De acordo com Cláudia, “a obra se vale de muitos códigos do fantástico para passar sua mensagem”: do drama sobre o deus aquático, que faz um paralelo, entre muitas camadas, com a natureza subjugada, ao machismo da época, que contrasta com a liberdade sexual e intelectual da protagonista, que termina também se tornando uma criatura da água.

Citando o escritor J. R. R. Tolkien, autor da saga “O Senhor dos Anéis”, a jornalista defende que toda nova história agrega símbolos, códigos, personagens e tramas ao que chama de caldeirão de histórias, ou seja, toda a base de narrativas que temos no nosso imaginário. Para Cláudia, no entanto, o valor do filme não está apenas no novo, mas também na forma como homenageia história clássicas dos quadrinhos e do cinema no século XX. “Del Toro é cheio de referências mágicas – e elas fortalecem ainda mais o fantástico ao serem lembradas e ressignificadas”.

Ainda que baseado em personagens fantasiosos e que já tenha se passado um ano desde seu lançamento, Cláudia acredita que A Forma da Água consegue trazer discussões relevantes até os dias de hoje. “Enquanto o filme nos fizer pensar sobre como usamos recursos naturais e de que forma tratamos o espaço e as pessoas com quem convivemos, ele seguirá atual”, conclui.

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