Um justiceiro sem super-poderes que defende os inocentes com a ajuda de aparatos tecnológicos, esconde sua identidade por meio de um disfarce e mantém um esconderijo secreto nas cavernas debaixo de um castelo. Pela descrição, não podemos estar falando de ninguém menos do que o Batman, certo? Neste caso, não é bem assim! Por mais que as características sejam idênticas, o personagem em questão é Judex, o primeiro super-herói a ser representado no cinema, em 1916.
Estreladas por René Cresté e dirigidas pelo cineasta francês Louis Feuillade, as aventuras de Judex (do latim, “juiz”) se passavam na França e logo foram ofuscadas pelos lançamentos de narrativas muito semelhantes nos Estados Unidos – A Marca do Zorro, de Fred Niblo, por exemplo, estreou em 1920. No entanto, a grande importância desta figura está em provar que, apesar da recente explosão no número de filmes de super-heróis, nosso interesse por histórias de redenção e justiça na grande tela já completa mais de 100 anos.
Neste período, os efeitos especiais evoluíram e as tramas ganharam diversas novas abordagens. Para o jornalista e crítico de cinema Roberto Sadovski, porém, o grande diferencial da atual safra de produção é a pluralidade. “Talvez a gente veja uma gama muito mais ampla de super-heróis do que antes porque hoje se faz mais filmes”, explica. Segundo ele, este ecletismo de personalidades se justifica pelo fato de não haver um gênero de filmes de super-heróis, mas toda uma variedade de enredos que entrelaçam categorias como a ação, o suspense, a comédia, a ficção científica e assim por diante. “Não existe exatamente uma representação específica.”
Neste sentido, não é possível afirmar que há um arquétipo de super-herói contemporâneo. “A figura do herói que foi firmada lá atrás com Superman em ‘Action Comics Número 1’ ganhou muitos tons de cinza com o tempo”, afirma Sadovski, concluindo que o único aspecto que une todos esses personagens é o senso de justiça – que nem sempre está necessariamente dentro da lei. De acordo com o crítico, o filme responsável por inovar e caracterizar um super-herói em ambientação mais realista é Batman – O Cavaleiro das Trevas, de Christopher Nolan, lançado em 2008. Ele defende, contudo, que o longa que aproximou o público a este universo para iniciados foi Matrix, das irmãs Wachowski, que demonstrou “de uma forma muito mainstream como seria um super-herói moderno.”
Novos vilões para novos tempos
No século 21 não são só os ladrões de bancos que brigam por espaço entre as preocupações dos super-heróis. “Existem outras questões mais existenciais e filosóficas que também ocupam a mente desses personagens e ao mesmo tempo de seus criadores”, conta Sadovski. A busca pela verdade é um desses dilemas, mas é comum observarmos, sobretudo nestas histórias, o esforço na direção da descoberta de uma identidade. Nos filmes da Marvel, por exemplo, temos o caso do Homem de Ferro, que vive às voltas com a questão de definir um sentido e uma causa para suas ações, o Capitão América, que batalha para encontrar o seu lugar depois da guerra, e ainda o Hulk, que procura saber se é um homem ou um monstro. Em resumo, são jornadas com o intuito de “entender quem ele é, por que ele faz o bem ou por que ele busca a justiça.”
Essa dualidade é muito bem representada pela escolha dos vilões, que surgem como um espelho no qual os super-heróis podem enxergar e combater as suas próprias fraquezas. “Nos primeiros filmes de cada herói, o vilão sempre age como uma contraparte muito parecida”, sinaliza Sadovski, citando rivalidades como a do Superman com o General Zod, que tem os mesmos superpoderes, a do Homem de Ferro com o Monge de Ferro, que também é um humano dentro de uma armadura, e a do Capitão América com o Caveira Vermelha, que representa o seu oposto ideológico.
Nas produções dos últimos anos, fica da mesma forma evidente a tentativa de trazer discussões atuais para a narrativa dos filmes de super-heróis. Aquaman, de James Wan, não apenas retrata a disputa pelo reinado dos sete mares como também chama a atenção para o problema da poluição dos oceanos. Já em Pantera Negra, de Ryan Coogler, a grande antagonista é uma civilização que, por anos, praticou a exploração da riqueza e dos recursos dos povos da África. “Com certeza, todas as mudanças dos super-heróis acompanham os anseios da sociedade e o modo como ela quer responder a algumas questões”.
Quadrinhos na linha de frente
Quando o assunto é super-herói, o cinema pode até receber os créditos por ampliar o público e arrecadar verdadeiras fortunas para as editoras, mas são nos quadrinhos que as trajetórias desses personagens estão sendo constantemente reinventadas para acompanhar os novos leitores. Se antigamente o Homem Aranha tinha amigos veteranos da Guerra do Vietnã, nas histórias de hoje estes combatentes vieram da Guerra do Golfo e do Afeganistão. “Do mesmo jeito, existe toda uma nova geração de criadores com uma nova perspectiva sobre como retratar esses heróis”, ressalta o crítico.
Considerando essas narrativas como reflexo do mundo contemporâneo, Sadovski acredita que, cada vez mais assistiremos a super-heróis que representam grupos historicamente pouco contemplados neste tipo de produção, como são o próprio Pantera Negra e Capitã Marvel, de Anna Boden e Ryan Fleck. “Existe um crescimento na preocupação com a diversidade e com a representatividade”, comemora o jornalista, que completa: “eu acho isso muito importante, ao mesmo tempo em que é importante continuar contando boas histórias”.
Para discutir este tema, o CineSesc promoverá, no dia 23 de abril, às 19h30, um debate gratuito sobre a “Representatividade no Cinema de Herói” durante o Cinema da Vela, que ocorre no saguão da unidade. O bate-papo contará com a mediação da jornalista e documentarista Flavia Guerra e participação da crítica Viviane Pistache e do diretor e crítico Gabriel Carneiro.