Há até poucos anos, era difícil imaginar grandes audiências se reunindo em salas de cinema para acompanhar o romance entre um jovem de férias no verão italiano e um acadêmico norte-americano. Ou mesmo para torcer pelo final feliz de um adolescente que se descobre gay e passa a trocar mensagens por e-mail com um admirador secreto. Mas tudo isto aconteceu em 2018 e – a melhor parte – da forma mais natural possível.
Além das narrativas de Me Chame Pelo Seu Nome, de Luca Guadagnino, e de Com Amor, Simon, de Greg Berlanti, outros personagens também representaram a comunidade LGBTQ+ em grandes produções internacionais: das drag queens de Nasce Uma Estrela, de Bradley Cooper, ao performático Freddie Mercury em Bohemian Rhapsody, de Bryan Singer.
Aqui no Brasil não foi diferente. Longas como Café com Canela, de Glenda Nicácio e Ary Rosa, O Animal Cordial, de Gabriela Amaral Almeida, e As Boas Maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra, também contaram histórias que discorrem, de um jeito ou de outro, sobre relações e figuras que fogem dos padrões convencionais. No ano passado, porém, o filme brasileiro que mais abriu espaço para a discussão destes dramas foi Tinta Bruta, dirigido por Filipe Matzembacher – que esteve no Seminário da Crítica do Festival – e Marcio Reolon.
Vencedor de prêmios no Festival do Rio e do Teddy Award – concedido a obras do segmento LGBT+ – como Melhor Longa-Metragem no Festival de Berlim, Tinta Bruta retrata a vida de Pedro (Shico Menegat), jovem que assume o codinome de GarotoNeon e se apresenta na internet coberto apenas por uma tinta fluorescente.
O argumento original foi desenvolvido a partir de um curta-metragem produzido pelos próprios diretores. Em O Quarto Vazio (2013), entretanto, o personagem principal – interpretado daquela vez por Marcio Reolon – não era homossexual. Ao longo da construção do roteiro do filme é que os realizadores perceberam o interesse em explorar o desejo e a sexualidade de Pedro, o que ocorreu “de maneira muito natural no processo de escrita”.
Questões dos corpos queer
Um assunto que permaneceu de um filme para o outro foi a sensação de abandono, vivenciada tanto pontualmente por Pedro em seus círculos sociais quanto pela cidade de forma coletiva, quando observamos que os planos da maioria dos jovens que aparecem no filme é deixar a capital gaúcha, onde se passa a história.
Segundo Filipe, este panorama ficou claro quando eles notaram que a cidade estava sendo desocupada e em seguida encontraram uma pesquisa que apontava o número recorde de imóveis vagos na região. “Reparamos que todos os nossos amigos estavam indo embora de Porto Alegre”. Em Tinta Bruta, aliás, a mudança da irmã Luiza para outro estado é mais um dos conflitos do protagonista.
Mas se para os realizadores o tema do abandono não está necessariamente relacionado com a sexualidade de Pedro, a noção de afeto, por sua vez, está o tempo todo ligada à forma como o personagem, um jovem gay, constrói as suas relações. Filipe conta que, na sociedade completamente LGBTfóbica em que vivemos, Marcio e ele quiseram ressaltar a importância de filmar corpos queer se desejando. “A gente sempre pensou muito nisso do afeto.”
Cinema LGBT
Para Filipe, o crescimento no número de produções cinematográficas contribuiu diretamente para que essas realidades, antes pouco representadas, conquistassem destaque no cinema nacional. Citando a importância de realizadores como Alice Riff, de Meu Corpo É Político (2017), e Marcelo Caetano, de Corpo Elétrico (2017), Filipe ainda ressaltou que não são somente os filmes com personagens gays, lésbicas, bi ou trans que precisam ser celebrados, mas toda obra que evidencie uma narrativa queer, ou seja, aquela que não se baseia nos lugares-comuns da heteronormatividade.
Sobre a reunião de todos estes títulos em uma categoria de “Cinema LGBT”, o diretor relativiza: “não existe resposta certa”. Para ele, no entanto, pensar na ideia de um “Cinema LGBT” implicaria na existência de um “Cinema Hétero”, o que também não ocorre na prática.
Filipe considera que o uso do termo faz muito sentido no contexto do estudo sobre como estão sendo pensadas as questões de gênero, mas alerta que reduzir estes trabalhos ao subproduto de um “Cinema LGBT” é muito limitante e pode confinar as produções na esfera do exótico, o que é muito paternalista. “Enquanto nicho de pesquisa, eu acho interessante”, explica. Na dúvida, ele lembra que é sempre preciso tomar muito cuidado com os estereótipos e declara: “no final, o que fazemos é simplesmente cinema!”