Uma cineasta que viaja com um artista plástico por cidades francesas em busca de rostos de gente comum, que revelam a potência da paisagem humana nas intervenções que propõem em cada local por que passam. Se, à época das filmagens de Visages, Villages, em 2016, a cineasta Agnès Varda já era uma das mais consagradas diretoras do cinema francês (e mundial, com décadas de carreira e dezenas de prêmios), JR, o artista, ainda que também prestigiado, era um jovem em busca de rostos, animais e detalhes para se tornarem parte de sua obra, sempre exposta a céu aberto, ou na rua, que ele chama de “a maior galeria de arte do mundo.”
Pois desta aparente diferença de gerações e métodos de trabalho – ela cineasta, ele um artista famoso por suas intervenções urbanas e seus imensos painéis que misturam grafite, arte urbana e fotografia, surgia o mesmo encantamento pelas pessoas, paisagens, os rostos (Visages) e as cidades (Villages) que o filme, penúltimo da carreira de Agnès, retrata e nos faz conhecer e percorrer ao longo de seus 84 minutos. (Re)assistir na tela grande a Visages, Villages, que integra a programação do 45º Festival Sesc Melhores, é uma oportunidade imperdível e ótima forma de homenagear a carreira de Varda.
As praias e o legado de Agnès
A cineasta nasceu Arlette Varda em 1928 na Bélgica. Morreu como Agnès Varda, uma das maiores cineastas da França, em 28 de março deste ano, aos 90 anos, em Paris. Em seus mais de 60 anos de carreira, retratou e celebrou a arte, a vida e navegou com desenvoltura entre a ficção e o documentário. E deixou um legado raro.
Seu último longa, ainda inédito no Brasil, Varda par Agnès (Varda por Agnès), foi exibido no Festival de Berlim em fevereiro e prenunciou sua partida. Muito por isso, o filme traz a cineasta no papel de si mesma, também em busca do que a movia em seus filmes, seus temas, seu modo de filmar, além de bastidores e depoimentos de profissionais que dividiram os sets com ela.
Se Varda par Agnès nos fala da cineasta e sua obra, em uma espécie de filme de despedida, Visage, Villages nos abre uma janela para ver Agnés literalmente em campo, pronta a lidar com o que ela dizia ser seu melhor roteirista: o acaso. Mais que a obra em si, é o processo de produzir arte antes mesmo de seu resultado, a interação com as comunidades e com JR que conta. Testemunhar, e viajar junto com Varda e JR é não só conhecer a França e suas pequenas cidades e seus moradores, mas também conhecer melhor as inquietudes, a história e o método da cineasta.
Ela dizia que tudo que se precisa na vida é de um computador, uma câmera e gato. Os gatos e as câmeras, velhos amigos da cineasta que já haviam ganhado seu devido destaque em As Praias de Agnés (2009), em que ela, “uma velhinha falante e gorda” se olha no espelho, ou, mais precisamente, abre-se diante de sua própria câmera e revela suas praias e paisagens internas. O auto-documentário, tão inventivo quanto toda a obra de Varda, traz sua infância, juventude, seu trabalho como fotógrafa antes de se tornar cineasta, a união com o cineasta Jacques Demy (que também foi retratado por ela em Jacquot de Nantes, de 1991, e em O Universo de Jacques Demy, de 1995), trechos de seus filmes, reportagens, entrevistas, sua inventividade, cenas com a família, cenas dela em campo, dirigindo tanto documentários como ficções. Tudo para revelar como em sua vida, obra e biografia sempre caminharam juntas.
Retrato de uma artista sempre atenta
Ao lado de Praias, Visages, Villages complementa o retrato de uma artista sempre atenta ao processo de criação. Neste último, Varda e JR fotografam as pessoas que conhecem pela jornada a bordo de um “caminhão câmera e estúdio” e imprimem versões enormes destes retratos em muros, caminhões, conteineres, casas, entre outros “suportes” improváveis. A reação das pessoas ao se verem em escala gigante, expostas diante de suas comunidades, (re)descobrindo seus próprios rostos marcam momentos especiais e delicados neste filme em que o humor, a leveza e o lúdico dão o tom.
Agnés foi de uma simplicidade e uma sofisticação ímpares. Para quem nunca se deparou com a obra dela, difícil imaginar que a veterana irreverente foi a primeira mulher a receber o Oscar pelo conjunto de sua obra, em novembro de 2017. A propósito, em seu discurso de agradecimento na cerimônia, em Los Angeles, declarou justamente que “entre o peso e a leveza, escolho a leveza.”
Um ano depois, quando concorreu com Visages, Villages ao Oscar de Melhor Documentário, não pôde ir à cerimônia por motivo de saúde, mas imprimiu a si mesma em um totem em seu tamanho natural e “foi levada” a Los Angeles por JR. No melhor estilo Visages, Villages, ela se fez presente e “posou” para a foto oficial ao lado de JR e dos demais indicados e em tantas outras fotos hilárias com nomes como Meryl Streep e Guillermo del Toro.
Assim era Varda. Percorrer com ela suas paisagens e praias, seus temas, seus personagens, desde mulheres (como em Cléo das 5 às 7, Uma Canta, Outra Não), trabalhadores (como em Os Catadores e Eu), ativistas (Panteras Negras), entre tantos outros, é descobrir que a leveza e a invenção sempre lhe foram muito caras.
Prova disso é que ela foi uma das precursoras da Nouvelle Vague – apesar de não pertencer propriamente ao movimento que revolucionou o cinema francês. Ela sempre se voltou mais a investigação e à união do cinema com as artes visuais e com a fotografia, além do cinema dos temas sociais, políticos e cinema experimental.
Entre a experimentação e as Palmas em Cannes
Varda estreou mundialmente As Praias de Agnés em uma sessão a céu aberto para 8 mil pessoas no Festival de Locarno 2014, onde recebeu o Pardo D’Oro, prêmio especial do festival Suíço, um dos mais importantes do circuito internacional. Ao subir ao palco para ser homenageada, declarou que a liberdade que sempre exerceu em seus filmes se dava muito por conta de sua falta de referência, principalmente na ocasião em que realizou seu primeiro filme, La Pointe Courte (1955), aos 26 anos. “Eu não vinha do cinema. Minhas grandes referências era os mestres da pintura e da fotografia. Talvez tivesse me intimidado se tivesse visto os grandes mestres antes”, afirmou a cineasta.
Em 2015, se tornou a segunda mulher a receber uma Palma de Ouro. Não era uma Palma em competição (esta até hoje concedida a uma mulher, Jane Campion por O Piano em 1993), mas sim pelo conjunto de sua obra. Em maio de 2017, mais uma vez roubou a cena em Cannes, quando Visages, Villages fez sua estreia mundial fora de competição no festival.
Ao final da sessão, uma das mais memoráveis de Cannes 2017, a cineasta também se emocionou ao receber mais de dez minutos de aplausos, e carinho, de uma plateia de mais de 2 mil pessoas também tocadas pela simplicidade e, ao mesmo tempo, sofisticação de Visages, Villages.
Pelos direitos das mulheres
Em 2018, Agnès voltaria a Cannes pela última vez. O festival do qual ela havia sido jurada em 1983 e 2005, e que em 1962 exibiu Cléo de 5 às 7 (que não levou a Palma naquele ano, em que o vencedor foi o brasileiro O Pagador de Promessas), foi palco de um momento histórico. Sorte de Cannes, ter na escadaria do Palais des Festivais Agnés Varda e Cate Blanchet, acompanhadas de outras 80 cineastas (simbolizando as 82 mulheres que já tiverem filmes competindo nas 71 edições do festival). Juntas, as duas leram um manifesto em defesa da paridade salarial, de oportunidades e igualdade para mulheres e homens do cinema, assim como em toda a sociedade.
“As mulheres não são minoria no mundo, mas nossa indústria atual diz o contrário. Como mulheres, cada uma encara desafios únicos e próprios. Mas estamos juntas nestes degraus para simbolizar nosso compromisso e determinação com o progresso. Somos roteiristas, produtoras, diretoras, atrizes, diretoras de fotografia, agentes, montadoras, distribuidoras, agentes de vendas e todas envolvidas nas artes cinematográficas. Nos solidarizamos com mulheres de todas as indústrias”, leu Agnès em francês e Blanchett, em inglês.
Ter Agnès como aliada na luta por mudanças é de fato um grande privilégio. A mulher sempre esteve em foco em seu cinema, mais especialmente em Uma Canta, Outra Não. No longa de 1977, ela retrata duas jovens, Suzanne e Pauline. Enquanto uma (Suzanne) já é mãe de dois filhos e, grávida do terceiro, sofre com dificuldades financeiras, a outra (Pauline) é estudante e quer ser cantora. Pauline decide ajudar Suzanne a fazer um aborto, mas seu plano é descoberto por seu pai, que a expulsa de casa. A partir daí, a luta das duas para, mesmo diante das vicissitudes de uma sociedade ainda altamente machista, ganha um tratamento humano e nunca moralista de Varda.
Muito por sua abordagem, Uma Canta, Outra Não é o filme em que a cineasta melhor retratou a complexidade da condição feminina. “Dizem que sou feminista. Não deixo de ser. Meu cinema é experimental, mas não necessariamente feminista. É sobre mulheres? Também. Me interesso por elas e gosto até de observá-las vendo meus filmes”, comentou certa vez ao ser questionada sobre o quanto se coloca e coloca suas questões em seus filmes.
Seja qual for o tema ou o experimento, a lista de suas obras é extensa e rica, sempre atenta à condição humana, tanto a dos outros quanto à sua. Se, como diz a diretora em Visages, Villages, “cada rosto conta uma história”, o rosto, as atitudes e o cinema de Agnès contaram e ainda contarão muitas histórias.
Visages, Villages será exibido no CineSesc nos dias 19 e 25 de abril, às 19 horas. No Sesc Belenzinho, o filme será exibido no dia 24 de abril, às 19h30 e no Sesc Campo Limpo a exibição será em 26 de abril, às 19h.