A internet como protagonista – as histórias que não existiriam fora do contexto digital

Em 1999, na iminência da virada do século e às voltas com a tensão que envolveu o chamado Bug do Milênio, a internet ainda era uma ferramenta restrita a um grupo muito limitado de pessoas. Nesta época, as referências de histórias que tratavam dos efeitos da tecnologia eram filmes que ora exploravam um universo distópico, como no cyberpunk Blade Runner, O Caçador de Andróides (1982), de Ridley Scott, ora projetavam um cotidiano com hologramas e carros e skates voadores, como em De volta para o Futuro 2 (1989), de Robert Zemeckis.

Foi neste contexto que estreou, em março daquele mesmo ano, a trilogia que logo se tornaria um parâmetro para todas as produções que se dispusessem a tratar de dimensões e realidades virtuais. As aventuras de Neo (Keanu Reeves) e Trinity (Carrie-Anne Moss) em Matrix, das irmãs Wachowski, foram responsáveis por popularizar todo um imaginário acerca do ambiente cibernético, assim como por suscitar as primeiras discussões sobre as consequências da vida em rede.  

Vinte anos depois, é praticamente impossível imaginar o dia-a-dia sem conexões online. Por meio da troca de dados, estruturamos e damos sentido a toda nossa rotina contemporânea: das atividades mais banais, como pagar uma conta no banco, às atribuições mais complexas, como realizar a manutenção das relações interpessoais. É natural, portanto, que as facilidades e as angústias da condição dos seres conectados influenciem diretamente as narrativas que são construídas hoje no cinema. Entre as produções de 2018, não faltaram exemplos de como diversas tramas simplesmente não existiriam sem o papel da internet.

Privacidade e reputação

A questão da privacidade e da reputação nas redes – tema que frequentemente estampa as manchetes de jornal – é o mote do enredo de Ferrugem, de Aly Muritiba, e de Aos Teus Olhos, de Carolina Jabor. No primeiro, acompanhamos o drama da jovem Tati (Tiffanny Dopke), que tem seus registros íntimos compartilhados em um grupo da turma do colégio após perder o celular. No segundo, é a vez do professor de natação Rubens (Daniel de Oliveira) passar por um processo de linchamento virtual ao ser acusado de abuso pela mãe de um de seus alunos.

Além de seu potencial de disseminação, a internet também é retratada como um espaço de socialização que, para o bem ou para o mal, é capaz de acolher as necessidades de quem busca por uma forma de expressão de sua identidade. Este é o caso de Pedro (Shico Menegat), de Tinta Bruta. Dirigido por Filipe Matzembacher e Marcio Reolon, o filme trata da história de como o personagem assume o codinome de GarotoNeon e começa a se apresentar de forma anônima na internet, coberto apenas por uma tinta fluorescente. Já no poético Yonlu, de Hique Montanari, a comunidade virtual frequentada por Vinícius Gageiro (Thalles Cabral) dá conta de incentivar o rapaz a seguir os planos de acabar com a própria vida.  

Os aspectos perigosos das interações digitais inspiraram, inclusive, verdadeiras histórias de horror. No suspense Buscando…, de Aneesh Chaganty, o desaparecimento de uma adolescente é investigado por seu pai, David Kim (John Cho), a partir de pistas nas suas redes sociais. Medo Viral, de Abel e Burlee Vang, por sua vez, é um terror escrachado que conta como um grupo de jovens passa a ser assombrado por um entidade maligna depois de baixar um aplicativo de smartphone. Assim como em Selfie Para o Inferno, de Erdal Ceylan, cuja protagonista, uma vlogueira canadense, descobre haver algo de sinistro envolvendo as selfies que tira com o seu celular.

Ativismo e sociabilidade

Mas nem só de histórias tensas são feitos os roteiros que têm a internet como pano de fundo. Quem assistiu a Com Amor, Simon, de Greg Berlanti, por exemplo, lembra-se que foi por conta da troca de e-mails entre Simon (Nick Robinson) e um confidente secreto que presenciamos uma das primeiras comédias adolescentes a abordar um romance gay nas telas dos cinemas. No caso do documentário Chega de Fiu-Fiu, as diretoras Amanda Kamanchek e Fernanda Frazão partiram de um movimento que surgiu online para retratar como a violência de gênero impacta o dia-a-dia de três mulheres. E foi por conta da criação de um aplicativo focado na educação sexual e na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis para jovens e adolescentes que conhecemos a narrativa de Náthalie Siqueira em A Tecnologia Social, de Patricia Innocenti, que narra a jornada da designer brasileira em uma viagem à África do Sul, onde conhece militantes e órgãos que auxiliam crianças e adolescentes em situação de risco.

Se ainda caminhamos para entender como a rede pode moldar as situações e a forma como nos relacionamos, a única certeza é a de que o cinema estará lá, no futuro, para registrar e nos fazer pensar sobre cada passo dessas mudanças.

Programação do Festival

A programação do 45º Festival Sesc Melhores Filmes está no ar e os ingressos estão disponíveis para compra na internet e nas unidades do Sesc em São Paulo.

carregando...