“Mais do que um documento, um filme é uma interpretação do processo histórico”

Em uma das sequências mais polêmicas de Maria Antonieta (2006), filme de Sofia Coppola sobre a jovem rainha guilhotinada durante a Revolução Francesa, assistimos a alguns momentos dos típicos excessos da corte da França, que levariam à revolta popular e ao fim da monarquia em diversos Estados europeus. Mas entre vestidos, sobremesas e maquiagens, o objeto que mais se destaca em meio a tanta abundância não é nenhum traje nobre, e sim um velho conhecido de todos que um dia já foram adolescentes: um par de tênis de uma marca famosa.

Essa marca de calçados, considerada um símbolo da juventude por gerações, foi criada no ano de 1917 e por esse motivo jamais poderia estar relacionada a uma cena sobre os hábitos do século XVIII, certo? Não completamente! Segundo Maurício Cardoso, professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo, o olhar do cineasta se aproxima do trabalho do historiador porque um filme histórico também é o resultado de uma determinada perspectiva. “Mais do que um documento, um filme é uma interpretação do processo histórico”, afirma.  

Doutor e pesquisador das relações entre Cinema e História com foco na produção audiovisual brasileira, indústria cultural e história pública, Maurício Cardoso defende que, apesar de o conjunto de uma obra histórica ter um compromisso com o real, a maior responsabilidade da narrativa cinematográfica é apresentar verossimilhança com o que efetivamente aconteceu. No caso de Maria Antonieta, a presença do tênis é – mesmo que improvável – um elemento que auxilia na construção da identidade da personagem, realçando o lado rebelde de sua personalidade.

O recurso da interpretação, no entanto, nem sempre vem desacompanhado de segundas intenções. Maurício alerta que, ao longo de diversos conflitos, a sétima arte serviu como ferramenta para a propagação de princípios, doutrinas e convicções, sendo, inclusive, “arma de difusão ideológica do stalinismo, do nazismo e dos governos norte-americanos”. Como exemplo, o pesquisador cita o caso de Hollywood e o total desinteresse pelos assuntos ligados à guerra até a data do ataque japonês à base de Pearl Harbor e a consequente entrada dos Estados Unidos na disputa mundial.   

O que garante mais neutralidade nas tramas que se valem de circunstâncias factuais, de acordo com o professor, é um certo distanciamento histórico em relação ao acontecimento, que permite uma melhor avaliação da herança e do saldo de cada episódio. “Quanto mais o tempo passa, mais temos clareza sobre os processos políticos”.   

Cinema 2018 – Mais do que nunca, a História em pauta

A realidade não serve de inspiração apenas para o cinema. Maurício explica que o interesse da sociedade por conteúdos verídicos é um fenômeno cultural mais complexo e amplo, que passa pelo fator da curiosidade humana e pela busca de um maior entendimento sobre como chegamos até aqui. “A história tem um peso muito grande na interpretação do mundo em que a gente vive”.

A maior prova disso é que em 2018 não foram poucas as produções que beberam na fonte das histórias reais para elaborar o seu enredo. Alguns destaques vão para Roma, que se passa em um conturbado período da história do México e exibe, inclusive, o capítulo conhecido como “O Massacre de Corpus Christi”, de junho de 1971; O Destino de Uma Nação, sobre a posse de Winston Churchill (Gary Oldman) como primeiro-ministro da Grã-Bretanha e os seus desafios perante a Segunda Guerra; e Uma Noite de 12 Anos, a respeito da prisão de José Mujica (Antonio de la Torre), Mauricio Rosencof (Chino Darín) e Eleuterio Fernández Huidobro (Alfonso Tort) no Uruguai de 1973.

E quando o assunto é transportar a História para as telonas, não são apenas os documentários e biografias que desempenham esta tarefa. Tanto filmes de guerra, terror e fantasia como dramas e até comédias podem usar como gancho os impasses da vida real.

Para Maurício, alguns ótimos exemplos de filmes históricos são Danton – O Processo da Revolução (1982), de Andrzej Wajda, que retrata a fase radical da Revolução Francesa e os embates entre Danton e Robespièrre; Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, longa baseado na obra de Graciliano Ramos que apresenta uma importante dimensão histórica; e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, cuja obra Maurício acredita ser não apenas um documento, mas uma produção intelectual sobre a época.

Da safra mais recente, o professor ressalta Infiltrado na Klan, de Spike Lee. Para ele, a produção consegue superar a tendência de uma narrativa histórica em deixar tudo no passado e estabelecer um contato entre o período e as práticas e consequências nos tempos atuais. “O Spike Lee encontrou o lugar de um filme histórico com um diálogo com o presente”, conclui.

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