Por Pedro Strazza
Para um filme tão movido pela revolta, chama a atenção que “Não Olhe Para Cima” tenha não um, mas dois momentos de derretimento de personagens durante um mesmo programa matinal.
O que faz a diferença entre as cenas é o timing. Na primeira, quando a cientista vivida por Jennifer Lawrence implode com a pequenice dos assuntos tratados na produção, o movimento é feito em repulsa imediata ao descaso invocado. Já na segunda, quando é a vez do cientista de Leonardo DiCaprio irromper em ira, a situação acontece após meses de tentativas frustradas de “usar a máquina” a seu favor.
Essas posições de contestação e negociação são fundamentais na narrativa do longa-metragem, e o impacto descomunal que este teve no fim de 2021 é bem revelador da eficácia destas ferramentas. Vencedor do prêmio de Melhor Filme Estrangeiro segundo o público do 48º Festival Sesc Melhores Filmes, “Não Olhe Para Cima” apela diretamente a um sentimento de desconforto comum no entendimento do mundo atual, mas que se invoca menos na reação que pelo desespero. Desmembrado entre a máxima aplicação da economia da atenção e a hiperatividade do digital, é claro que preocupa o desinteresse do mundo com os próprios problemas “reais”, mas a produção se interessa mais no registro físico desta constatação do que em encontrar soluções.
Muito disso se deve à sátira, claro, gênero que o diretor Adam McKay resgata para processar essas dores pela vertente mais louca da comédia. O uso do gênero e as semelhanças diretas de tema levaram a crítica a comparar o projeto com “Dr. Fantástico” na época do lançamento, mas os filmes são diferentes em seus méritos dentro da mesma abordagem apocalíptica. Lançada em 1964, a produção de Stanley Kubrick se concentrava em filtrar as tensões da Guerra Fria pelo absurdo da escala, um grande jogo de damas interpretado como xadrez por um grupo minoritário de lideranças de cabeça pequena – algo coroado no tal personagem do título, uma aberração ideológica disforme reminiscente do nazismo tão abertamente condenado pelo diretor.
Já “Não Olhe Para Cima” se interessa pela sistematização em torno desses jogos de poder, com suas figuras dominantes servindo como elementos e não protagonistas de um mundo adoecido pela lógica do absurdo. Importa muito nessa hora que a direção seja bem menos obcecada com precisão, com McKay permitindo ao seu vasto elenco que improvise o tanto quanto possível nas caricaturas enlouquecedoras que personificam.
Uma boa definição de todo o trabalho foi escrita pelo crítico Ruy Gardnier na época da estreia, pelo jornal O Globo: “É basicamente sobre os EUA, mas isso não impede que tracemos diversos paralelos com outros países e outras crises, no caso Brasil e Covid-19: a infantilização dos meios de comunicação é a mesma e o poder do negacionismo é igual. E Adam McKay filma isso tudo com o desespero existencialista de um Bergman? Não, ele filma o mundo dos poderes e da mídia como eles merecem ser filmados: como um circo”.
Nesse sentido, uma melhor aproximação que pode ser feita com o filme é a partir de “A Mulher Faz o Homem”, clássico de 1939 dirigido por Frank Capra. Até porque a premissa é similar, guardada as devidas diferenças de contexto e mesmo gênero: tanto McKay quanto o longa estrelado por James Stewart partem da história de uma figura “pura” que descende a um mundo vil e altamente corruptível, se fazendo daí em torno da espiral de enlouquecimento que desanda a um absurdo de intransigência.
As definições de idealização mudam entre as obras – lá era um chefe de escoteiros, aqui são cientistas trabalhando em um observatório – mas a divergência final está em como se enquadra a curva do protagonista. Se “A Mulher Faz o Homem” ainda se montava em noções caprianas, com o ato final de Stewart sendo destacado como defesa final da democracia americana, “Não Olhe Para Cima” entende do começo a ausência de solução para seu mundo e embarca no acompanhamento desvairado da destruição subsequente. Prova disso são as desfigurações físicas crescentes dos personagens de Lawrence e DiCaprio ao longo do filme, coroados nos momentos finais de fúria dentro do programa matinal.
Aos olhos de McKay, o mundo não tem salvação, então pelo menos se ofereça uma oportunidade de riso ao público perante o próprio retrato final de ignorância – sem nunca esquecer do desconforto que o acompanha.
Exibido no último dia 7 de abril, “Não Olhe Para Cima” retorna à programação do festival na próxima segunda-feira, 18 de abril, às 20h30. É uma oportunidade única de presenciar o desvario promovido pelo filme com toda a imersão da telona do CineSesc.