Por Pedro Strazza
Uma mulher abre as portas de um galpão, conferindo se pegou tudo que precisava de seus itens pessoais antes de cair na estrada e deixar para trás a cidade onde morou por tanto tempo. A imagem pode ser banal, mas ganha peso ao ser antecipada por um letreiro que informa pouco antes: há dez anos, aquela região foi largada por uma grande corporação e teve seu CEP desligado pouco tempo depois, com sua população de funcionários que ali viviam sendo largados à própria sorte para sobreviver.
É assim, entre a melancolia e a desolação, que começa “Nomadland”. Dirigido por Chloé Zhao, o longa-metragem estrelado por Frances McDormand se encarrega de registrar a vida dos marginalizados nos EUA, vivendo como nômades e pulando de um trabalho a outro para se manter. O retrato duro, mas poético dessas pessoas a partir de uma personagem fictícia, Fern, foi o que rendeu ao projeto uma série de prêmios importantes, incluindo o Oscar de Melhor Filme, o Leão de Ouro do Festival de Veneza e os prêmios de Melhor Atriz Estrangeira do público e da crítica no 48º Festival Sesc Melhores Filmes.
Ao mesmo tempo, é importante se notar que a história contada no filme diz respeito a uma realidade muito específica de um país, mesmo quando se tratando de um tema comum entre os países do globo quanto a marginalização social. É o que diz Carmen Silva, coordenadora do Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC), que participou do bate-papo logo depois da exibição do filme na sala do CineSesc, na última quarta-feira 13/4. Ela aponta com precisão a diferença que separa a realidade brasileira da norte-americana quando se trata da opressão sistemática e estrutural: “nós não nos retiramos, nós reivindicamos nosso lugar. Rico ou pobre, todos nós queremos uma casa”.
A conclusão vem quase que imediatamente no bate-papo sobre o filme, parte da programação da edição 2022 do projeto Inspira – Ações para uma Vida Saudável, que celebra o Dia Mundial da Saúde com uma programação extensa sobre o tema – este ano dedicado a reflexões sobre a qualidade de vida no tripé formado por indivíduo, sociedade e trabalho. Além de Silva, a conversa com o público mediada pelo jornalista Bruno Torturra, ainda contou com participação de Eliane Caffé, cineasta que conduziu um projeto de abordagem parecida com o de Zhao em 2016, adequado ao contexto brasileiro das ocupações: “Era o Hotel Cambridge”, documentário com traços de ficção sobre os moradores de um edifício abandonado no centro de São Paulo.
Caffé também é muito sucinta para definir sua relação com o tema. “Fiquei muito triste depois de ver o filme, ele é profundamente ideológico”, comenta a diretora no encontro; “Ele junta elementos de um jogo extremamente corrosivo, como a Amazon, a cidade abandonada e os peregrinos”. Pouco depois, ela ainda relembra os “silêncios estruturais” que dominam a narrativa da produção, especialmente em como eles estabelecem os efeitos do capitalismo predatório como pessoais e não coletivos naquela sociedade: “Todas as saídas são individualistas. Aquele senhor que lidera o movimento dos nômades, depois vai se revelar que ele faz isso não por revolta, mas pelo luto do filho”.
A diretora ainda aponta as desinformações veiculadas pela corporação fundada por Jeff Bezos em “Nomadland”, especialmente a cena em que um instrutor realiza um treinamento de segurança para novos funcionários. A cena instiga a veicular uma informação que contradiz a realidade, com Caffé relembrando o movimento Make Amazon Pay que no ano passado mobilizou milhares de funcionários da empresa ao redor dos EUA para lutar justamente por melhores condições de trabalho e pagamentos dignos. Como é bem lembrado na conversa, a Amazon teve um faturamento de 25 bilhões de dólares em vendas durante 2021 por conta da pandemia, com Bezos faturando 11 milhões por hora. Um trabalhador do chão de fábrica, no mesmo período, fazia 15 dólares por hora.
“É uma aceitação da exploração” comenta Silva sobre o assunto, relembrando ainda como esse sintoma também se verifica no país pela precarização das leis do trabalho e os escândalos seguidos de abuso nos aplicativos de delivery como o iFood. Com Caffé citando que os Estados Unidos atuam hoje como “centro de formação ideológica que irradia para o resto do mundo”, Silva também pesa muito os efeitos da crise psicológica, disparada pela pandemia e a crise econômica, nas mulheres, que recebem todo o impacto das mudanças estruturais em sua vida cotidiana pela via dos abusos domésticos e do sufocamento de seu espaço no ambiente público.
Enquanto Torturra cerca toda essa discussão relembrando o contexto histórico muito específico em que se passa “Nomadland”, dos efeitos da crise de 2008 na sociedade norte-americana que encerram décadas de enriquecimento, a coordenadora do MSTC apresenta caminhos para começar a mover o ponteiro da marginalização contra a expulsão: a manifestação política, que exerce atualmente como vereadora da cidade. “Enfrentar o sistema é algo horizontal, e precisamos combater a lei com a própria lei” afirma Carmen Silva no fim do debate; “Nós temos que ter participação ativa nas discussões municipais”.
Para tanto, ela ainda comenta a importância da produção de “Era o Hotel Cambridge”, no qual teve participação ativa na escrita do roteiro e construção da narrativa. “A gente perdeu o medo de sair da bolha”, comenta no encontro; “Enxergávamos a cultura como predatória, mas a partir de ‘Cambridge’ pudemos ver ela como origem e interagir com a sociedade. Chega de portas fechadas”.
O projeto Inspira segue acontecendo nas 40 unidades do Sesc São Paulo até o dia 17 de abril, com previsão de realização de mais de 100 atividades que dialogam e se aprofundam em temas como bem-estar espiritual, físico, mental, psicológico e emocional, relacionamentos sociais, com a família, amigos e colegas de trabalho ou de estudos, além de saúde e educação. Você pode conferir a programação completa aqui.