Por Pedro Strazza
Quando o assunto é cinema, o roteiro se confunde muito com a contação da história. Se alguém elogia o roteiro de um filme, geralmente a pessoa parece querer dizer com isso que a trama foi bem desenrolada ou quer destacar uma porção de diálogos que “foram muito bem escritos” e executados pelo elenco.
O processo de escrita envolve tudo isso, claro, mas há uma importância maior na produção de um filme. Embora considerados clássicos também por suas histórias envolventes e falas marcantes, os roteiros de longas-metragens como “12 Homens e Uma Sentença”, “Pulp Fiction: Tempo de Violência” e “Taxi Driver” se destacam por ajudar suas respectivas equipes a alcançar as narrativas brilhantes que seguem impactando o público até os dias de hoje.
O bom roteiro é acima de tudo um que estabelece o tom, permitindo que o elenco e departamentos técnicos como a fotografia, a direção de arte e a trilha sonora sirvam o melhor possível à visão do diretor. Para além das falas e da premissa, o texto escrito pelos roteiristas cria um norte para onde o filme deve ir, e por esse motivo inclui em sua feitura a construção de cenas em questões como dinâmica, situação de espaços e até mesmo posicionamentos gerais de câmera e iluminação. A narrativa nasce no texto para depois evoluir pelas mãos dos outros.
“O roteiro é a base na qual o filme se sustenta”, escreve o roteirista Henrique dos Santos ao blog, ao qual ainda comenta da importância dessa base estar “sólida” para permitir que todos os envolvidos possam ir além do que o texto oferece: “Um roteiro sólido é o que fornece segurança para que os outros profissionais – atores, montadores, figurinistas, fotógrafos – possam criar a partir daquele material e enriquecer ainda mais a arte final. Ser uma base sólida não significa que o roteiro precisa estar perfeito, até porque dificilmente se chega à fase de produção com algo cem por cento satisfatório – um diálogo, um tom de cena, um personagem coadjuvante; sempre há algo que nos parece passível de ser melhorado. Significa ter coerência nas decisões”.
O também roteirista Felipe Braga tem uma visão similar à de Henrique. “O roteiro é um ponto de partida e um ponto de chegada, dentro do qual existe a contribuição de cada artista envolvido no processo”, comenta o criativo; “é o ponto de partida porque é o único documento que orienta essa coletividade em prol de um único objetivo, e é um ponto de chegada porque depois que cada colaborador dá a sua parte artística ao filme, com cada colaboração apontando para um lugar levemente diferente”.
As declarações de Henrique e Felipe dizem respeito tanto a produções originais quanto aquelas que adaptam materiais previamente lançados, o que não deixa de ser interessante por refletir as categorias de roteiro do Festival Sesc Melhores Filmes deste ano – onde ambos saíram vitoriosos por parcerias com os respectivos diretores.
Junto de Wagner Moura, Felipe Braga viu seu roteiro de “Marighella”, baseado na biografia escrita por Mário Magalhães, ser eleito pelo público o melhor roteiro de um filme nacional em 2021. Por trabalhar com um livro de quase 800 páginas, ele diz ao blog que o processo criativo do roteiro do filme envolveu sobretudo entender que tipo de história queriam contar à partir da história de Carlos Marighella: “A gente olhou o livro, viu que existiam cinquenta filmes diferentes, e aí fizemos uma reunião para decidir qual desses filmes escolheríamos para contar nossa história. A partir dessa escolha, pesquisas são feitas, entrevistas com personagens reais são tocadas, e dessa composição entre livro, pesquisas, entrevistas e as próprias necessidades dramatúrgicas do diretor que o roteiro se estabelece”.
Já Henrique dos Santos saiu vencedor do prêmio da crítica junto de Aly Muritiba, diretor com o qual co-escreveu “Deserto Particular”. Além de destacar o longo desenvolvimento de cinco anos, ele escreve que o roteiro original do filme passou por diversos tratamentos e reescritas para aperfeiçoar elementos como a sinopse e o argumento geral, bem como permitir consultas de terceiros sobre todos os três atos da obra. “O roteiro é o espaço para se testar possibilidades norteadas sempre pela premissa”, define o criativo; “Isso possibilita um tratamento mais próximo possível do resultado final, sem jamais se fechar completamente para estar aberto ao que o processo de filmagem com os atores, outros profissionais da equipe e as locações podem trazer de valioso para a história, ficando totalmente completo somente com a montagem”.
Roteiros que se destacam no 48° Festival Sesc Melhores Filmes
“Marighella” e “Deserto Particular” não são os únicos exemplos de bons roteiros na programação do festival, sejam originais ou adaptados.
Um bom caso que mistura os dois é “Annette”. Escrito pelos irmãos Ron e Russell Mael – a dupla por trás do Sparks – o filme de Leos Carax na verdade é uma versão adaptada de um disco conceitual pensado há uma década por eles, que acabou se convertendo no musical estrelado por Adam Driver e Marion Cotillard. Além de reenquadrar o material às vocações do cinema do diretor, os Sparks aproveitaram a oportunidade para expandir o material e até mesmo refazer o final, criando a música que embala o desfecho sugerido pelo próprio Carax. Isso sem perder de vista o humor característico de seus trabalhos, claro.
Outro exemplo que engloba um olhar original sobre histórias pré-estabelecidas é “Undine”, de Christian Petzold. Enquanto na direção ele se preocupou em entrelaçar a mitologia do conto da sereia com sua análise da Alemanha contemporânea, Petzold no roteiro fundamenta bastante a história de amor que há de ser a vertente principal do filme, alinhando-a com questões urbanísticas de Berlim e abrindo espaço para que os atores Paula Beer e Franz Rogowski criem suas próprias versões dos personagens.
Os dois filmes vencedores do Oscar de roteiro de 2021 também estão presentes no festival e revelam preocupações distintas na hora de viabilizar propostas ousadas. Em “Bela Vingança”, Emerald Fennell estabelece no texto não apenas as viradas catárticas de sua trama de vingança feminista, mas o teor pop que vai diluir no olhar da protagonista questões muito fortes como a de estupro ou da misoginia. O trabalho rendeu a ela a estatueta de roteiro original na Academia.
Já “Meu Pai”, vencedor do Oscar de roteiro adaptado, é um exemplar interessante de tradução de uma peça para as telonas pelas mãos do seu autor. Além de idealizar o filme do começo com Anthony Hopkins no papel, Florian Zeller também trata de acomodar a perspectiva afetada de seu protagonista com demência para a narrativa do cinema, criando as bases que vão permitir à direção de arte trazer à vida as diversas mudanças passadas no espaço do apartamento – algo que no teatro ficaria encarregado ao talento dos atores escalados.