Candidaturas e premiações, seja em festivais ou em listas dos “melhores do ano”, revelam a vitalidade das produções realizadas fora do eixo Rio-São Paulo
Por Ismail Xavier*
Desde os anos 1960, notícias e comentários sobre prêmios recebidos por filmes brasileiros em festivais internacionais de prestígio têm despertado a atenção de um público mais amplo do que o contingente de cinéfilos que acompanham o cinema mais de perto. Um primeiro exemplo foi o impacto do Prêmio de Melhor Filme – a Palma de Ouro de 1962 – conquistado em Cannes por O pagador de promessas, de Anselmo Duarte. Depois vieram outros prêmios ao longo destes decênios, tendo os festivais internacionais sedimentado o prestígio do Cinema Novo nos anos 1960-70. Comento aqui os casos mais recentes, deste biênio 2019-2020
Durante os anos 1950-1990, a tônica foi o domínio do eixo Rio-São Paulo como polo de produção dominante, dado que também se expressa quando se consulta a lista de premiações no exterior. E estamos agora num momento em que uma atenção, digamos, especial ao cinema brasileiro vem ocorrer novamente impulsionada pelos prêmios em festivais.
Em 2019, dois filmes brasileiros foram laureados no Festival de Cannes: A vida invisível, de Karim Ainouz, Melhor Filme da Mostra Un certain regard paralela à competição dos concorrentes à Palma de Ouro; e Bacurau, de Kleber Mendonça Filho, que ganhou o Prêmio Especial do Júri do Festival. Dois filmes de qualidade que tiveram depois notável recepção do público, especialmente Bacurau, que já está atingindo a marca de 800.000 espectadores no mercado brasileiro.
O dado novo trazido por esta virada de ano 2019-2020 foi a presença de um filme brasileiro como um dos finalistas na disputa pelo Oscar de melhor documentário: Democracia em vertigem, de Petra Costa. Há uma clara diferença frente aos casos acima citados, pois o Prêmio concedido pela Academia de Hollywood alcança muito maior visibilidade, sendo seu espetáculo da entrega de prêmios transmitido pelas emissoras de TV mundo afora. Vale aí sua central ligação com a grande indústria dos meios de comunicação, o star system movido pela enorme máquina publicitária e o impacto da premiação na carreira comercial dos filmes.
E o caso do filme de Petra polarizou aqui as atenções e o debate, dada a sua interpretação do processo político brasileiro de 2013 a 2018. Nesta mesma premiação, indicado a três Oscars, esteve presente Dois Papas de Fernando Meireles, uma co-produção internacional cujo conteúdo é também polêmico. Quanto a prêmios, não foi ainda desta vez.
Em fevereiro de 2020, Todos os mortos, de Marco Dutra e Caetano Gotardo, cineastas de São Paulo, esteve concorrendo no Festival de Berlim. E Aos olhos de Ernesto, filme gaúcho de Ana Luiza Azevedo, no Festival de Punta del Este. Um aspecto notável nesta referência às candidaturas e premiações, seja em festivais ou em listas dos “melhores do ano”, é o novo perfil dos filmes brasileiros em competição, uma vez que foi superada aquela concentração de décadas anteriores em filmes do eixo Rio-São Paulo. E também temos tido a presença de cineastas brasileiros dirigindo filmes de destaque nas co-produções internacionais.
Isto reflete com nitidez a diversificação dos polos de produção de cinema no cenário atual, onde há uma forte presença de filmes pernambucanos, mineiros, gaúchos, cearenses, baianos, além de outros estados já presentes, embora sem a mesma ênfase. Kleber Mendonça Filho é cineasta do Recife que afirmou seu prestígio no cinema brasileiro atual dentro de uma conjuntura em que os filmes de Pernambuco formam o conjunto mais coeso em sua abordagem de questões do Brasil contemporâneo. Em especial, quando consideradas as mazelas de nosso processo de modernização truncada e as formas de desigualdade que marcam a vida social das grandes cidades. O som ao redor (2012) se fez um emblema deste processo. Karim Ainouz é cineasta cearense e também tem dirigido filmes em parceria com pernambucanos. Já A vida invisível é uma co-produção teuto-brasileira, com participação do Canal Brasil, com sede no Rio de Janeiro.
A expressão maior dessa ampliação de focos são os principais Festivais brasileiros. Tomo como exemplo o de Brasília. Prêmio de melhor filme em 2018: Temporada, de André Novais de Oliveira, produção mineira como tantas outras que têm alcançado destaque junto à crítica. Prêmio de melhor filme em 2017: Arábia, dos mineiros Affonso Uchoa e João Dumans; prêmio de melhor direção: Adirley Queiroz autor de Era uma vez Brasília, cineasta brasiliense dos mais originais da nova safra. Festival de 2019: melhor filme: A febre, de Maya Da-Rin (Rio de Janeiro); prêmio do Juri Popular e Prêmio ABRACCINE: O tempo que resta, de Thais Borges (Brasília); Prêmio Especial do Juri: Piedade, de Cláudio Assis (Pernambuco).
Esta ampliação dos polos de produção foi gerada pelo modelo criado por Lei Federal de 1994 que definiu o financiamento a partir de mecanismos de Isenção Fiscal, esquema a que se somaram o aporte de entidades dos estados da Federação e os Impostos pagos por órgãos da mídia que veiculam filmes e vídeos em diferentes plataformas.
Houve não apenas um incremento quantitativo na produção como também uma diversidade de focos geradores de pontos de vista distintos. Isto tem permitido ao cinema compor um leque de representações da experiência do país que enriquece o seu papel cultural dentro desta conjuntura atual a que ele tem dado respostas aptas a avivar o debate e dar voz a distintos setores, regiões, identidades de gênero e raça, em alguns casos trazendo valiosas referências históricas que ajudam a entender os processos vividos no presente.
*Ismail Xavier é teórico e professor de cinema brasileiro. É autor de diversos livros, entre eles O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência (1977); O cinema brasileiro moderno (2001); e Sétima arte: um culto moderno (2017)