O Brasil precisa (re)descobrir Martírio

Alguns filmes nascem da urgência. Outros nascem históricos. Martírio é um filme que nasceu tão urgente quanto histórico. Dirigido pelo indigenista e documentarista Vincent Carelli (e codirigido por Tita e Ernesto Carvalho), o longa que retrata a saga do Guarani-Kaiowá por sua sobrevivência mobilizou o público de todos os festivais e salas em que foi exibido. 

Do Festival de Brasília 2016, onde fez sua première para uma plateia engajada e emocionada, à sua estreia em abril de 2017 em 20 cidades brasileiras, Martírio coleciona reações acaloradas, prêmios e muita discussão em torno de um tema tão antigo quanto o Brasil e, ao mesmo tempo, tão atual: a história de violência contra os direitos indígenas que faz parte da gênese do País. 

“É um reconhecimento deste filme que trouxe à consciência do público brasileiro de uma tragédia tão desconhecida e tão presente, em um momento do País em que todos nós somos índios. Todos nós perdemos direitos todos os dias” declarou o diretor durante a entrega dos prêmios do 44o Festival Sesc Melhores Filmes, em abril deste ano, quando o longa foi eleito pela crítica especializada como o Melhor Documentário de 2017. “E este filme, que trouxe a mim, como cineasta da questão indígena, uma satisfação, um momento da minha vida, uma realização de ter tocado de maneira tão profunda. As pessoas saíam questionadas. Foi muito importante”, completou ele.

Além deste mais recente prêmio, o documentário ganhou também o de Melhor Filme do Júri Popular e o Prêmio Especial do Júri no 49º Festival de Brasília de Cinema Brasileiro; o de Melhor Documentário Brasileiro (Prêmio do Público) da 40a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e o Prêmio Spcine para o Cinema Brasileiro de Melhor Documentário, além do Prêmio de Melhor Filme da IX Janela Internacional de Cinema do Recife.

No exterior, o 31o Festival Internacional De Cine De Mar Del Plata elegeu Martírio como o Melhor Longa-metragem da Competitiva Latino-americana; já o PACHAMAMA Cinema de Fronteira 2016 premiou o longa com o título de Melhor filme (Prêmio do Júri) e Melhor filme (Prêmio Universidade Federal do Acre).

Citar os prêmios que o longa coleciona é apenas mais uma forma de ilustrar o quanto tanto público quanto a crítica são tocados pela forma com que Carelli narra o que o diretor definiu como o princípio da grande marcha de retomada dos territórios sagrados Guarani-Kaiowá. Carelli, que há décadas documenta a luta indígena e capacita cineastas indígenas por meio do projeto Vídeo nas Aldeias, registrou o princípio do movimento nos anos 1980, continuou a documentar as questões indígenas ao longo dos anos para a feitura de sua trilogia, da qual Martírio faz parte e que começou com o também premiado Corumbiara (que enfoca o massacre de índios na Gleba de Corumbiara, em Rondônia, em 1985, denunciada pelo indigenista Marcelo Santos) e vai ser encerrada com Adeus, Capitão, ainda em processo.

Passaram-se duas décadas até que, depois de tomar conhecimento de massacres que continuam ocorrendo nas terras dos Guarani-Kaiowás, o cineasta foi investigar onde tudo começou. E entendeu que o princípio do genocídio deste povo (assim como o de tantos outros) está em uma guerra em que as forças são desproporcionais. De um lado, o homem branco e sua visão de mundo, de estilo de vida e de progresso. De outro, povos como os Guarani-Kaiowá e sua resistência obstinada. Se seus antepassados encararam o descaso e a violência dos colonizadores, do Império, dos desdobramentos da controversa Guerra do Paraguai, do governo de Getúlio Vargas, da Ditadura Militar, hoje enfrentam o a poderosa presença do agronegócio.

Em busca de uma nova narrativa

Martírio é feito não só por Carelli, mas também pelos indígenas, que não só constroem com o diretor uma narrativa que traduz a complexidade da cultura, filosofia, religião e consciência dos Guarani-Kaiowá sobre uma lógica social, política e econômica que os exclui e aniquila dia a dia. 

Para contar esta história tão complexa, Carelli optou por um formato claro e direto. À medida em que as imagens se revelam na tela, a narração do cineasta esmiúça os fatos históricos e detalha a relação do cineasta com personagens que ele filmou há tempos e que voltam diante de sua câmera. Descobrimos mais sobre o Brasil, sobre cada um dos personagens e sobre a luta de cada indivíduo Guarani-Kaiowá, luta esta que é, mais que tudo, também coletiva e pela sobrevivência de não só um, mas de todos os povos indígenas.

Contra eles, a nossa lógica capitalista predadora, o agronegócio, que clama querer paz para trabalhar a terra e gerar divisas para o País, como argumenta Kátia Abreu, ex-ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, em um dos tantos momentos em que a razão cínica toma conta da narrativa dos que veem na luta dos Guarani-Kaiowás apenas uma ameaça aos negócios do campo.

Como observa o próprio Carelli, como vencer esta batalha em um território (no caso do filme, propriamente o Mato Grosso do Sul, mas que se estende a todo o País) em que a narrativa dominante é a da cultura massiva do agronegócio e de que o indígena é uma ameaça ao progresso e, em alguns momentos, tido como povo violento capaz de “obrigar” os fazendeiros a se armarem e se defenderem?

Como construir uma nova narrativa? Este talvez seja o maior desafio levantado por Martírio e que nos cala fundo, indigna mas também estimula. Ver Martírio, conhecer a História e as histórias de luta dos Guarani-Kaiowá é preciso!

Por Flavia Guerra

(Imagem: divulgação do filme Martírio)

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