2020 foi o ano em que muitas coisas mudaram por conta de uma nova crise sanitária mundial, e com o cinema não foi diferente. As salas ficaram fechadas por mais de cinco meses e intensificamos o recente hábito de ver filmes em casa através das plataformas de streaming. Muitos filmes destinados a ser grandes sucessos de bilheteria como, por exemplo, 007 – Sem Tempo para Morrer, Um Lugar Silencioso 2, Mulan, entre outros, não deram às caras na tela grande por causa da pandemia de Covid-19, que ainda faz vítimas no mundo todo.
Entretanto, já havia começado um movimento que se aprofundou no (primeiro) ano desta grave crise de saúde pública: o aumento da diversidade nas telas. O cinema tem se tornado cada vez menos um território majoritariamente dominado por cineastas homens e brancos. Também estamos vendo paulatinamente cada vez mais profissionais de todas as raças e gêneros tendo protagonismo para dirigir, escrever e interpretar suas histórias.
Vamos aos números: dos 110 filmes estrangeiros lançados no ano passado, 21 deles (quase 20%) tiveram mulheres na direção, ainda que alguns numa codireção com homens. Esse leque contempla desde grandes filmes de autoras premiadas em festivais de cinema prestigiados, como a produção francesa Retrato de uma Jovem em Chamas, de Céline Sciamma, ou o aclamado longa alemão Transtorno Explosivo, de Nora Fingscheidt; filmes do Oscar, como o norte-americano Adoráveis Mulheres, de Greta Gerwig; e até filmes de super-herói como Aves de Rapina, de Cathy Yan, e a animação Frozen 2, de Jennifer Lee e Chris Buck. Espaço ainda para um documentário de menor orçamento sobre uma das cineastas pioneiras que ajudou abrir caminho para todas as mulheres, Alice Guy-Blaché: A história não contada da primeira cineasta do mundo, e um filme de terror que fala diretamente sobre violência doméstica contra a mulher, O Homem Invisível.
No cinema brasileiro, a margem de mulheres diretoras foi ainda melhor: dos 60 filmes lançados, entre ficções e documentários, 15 deles (25%) tiveram mulheres atrás das câmeras! Fazemos logo abaixo um balanço específico das produções nacionais.
“Não consigo respirar”
Em 2020 também foi o ano que vivenciamos o episódio do assassinato do norte-americano negro George Floyd pela polícia nos EUA, cuja comoção e indignação se espalharam pelo mundo todo. O reflexo disso a nível político, social e cultural levou premiações e festivais de cinema mundo afora, inclusive o Oscar, a repensar suas próprias estruturas internas e externas, buscando aumentar a representatividade de negros não só como votantes e participantes ativos, como também nas indicações para filmes com histórias e personagens negros.
Num ano de exceção pandêmico, alguns poucos exemplares ecoaram esse tema no cinema: o francês Os Miseráveis, premiado em Cannes, sobre as fortes tensões raciais nos subúrbios de Paris e como a polícia lida com ela; Luta por Justiça, um clássico drama de tribunal norte-americano em que um advogado negro decide ir ao Alabama defender condenados negros à pena de morte; e Bad Boys para Sempre, em que dois dos maiores atores negros dos EUA, Will Smith e Martin Lawrence, revivem seus personagens emblemáticos do clássico pop dos anos 90.
A pressão por maior representatividade deixou-se ver na oferta dos catálogos das plataformas de streaming. A Netflix lançou o mais recente filme de Spike Lee, Destacamento Blood, sobre a participação dos soldados negros na Guerra do Vietnã; e o recém falecido Chadwick Boseman, que participa como coadjuvante no longa de Lee, está recebendo prêmios por seu trabalho em A Voz Suprema do Blues, que mostra como os artistas negros foram fundamentais na consolidação desse gênero musical. Na Amazon Prime Video, Regina King, atriz e diretora, recordou um episódio importante da história negra americana com o seu Uma Noite em Miami.
E a plataforma gratuita de streaming do Cinema #EmCasaComSesc disponibilizou abertamente obras seminais como, por exemplo, o documentário Eu não sou seu negro, indicado ao Oscar, sobre o escritor James Baldwin (1924-1987); a produção queniana Rafiki, que foi banida de seu país de origem ao contar a história de amizade que se transforma em amor entre duas jovens mulheres; além de uma gama de filmes africanos contemporâneos no projeto Cine África.
Cinema brasileiro: entre a crise e a diversidade
Sem dúvidas um ano de trovões e tempestades para o cinema brasileiro. Além da própria pandemia, que atrasou lançamentos e interrompeu produções em curso, o setor sofreu e ainda sofre com a paralisação do fomento da Ancine (Agência Nacional do Cinema), ligada ao governo federal. Os efeitos dessa paralisação, infelizmente, vão continuar sendo sentidos nos próximos anos. No entanto, os filmes lançados em 2020 – fruto de investimento e produção de anos anteriores – revelaram a diversidade em temas, olhares, personagens e opiniões que compõem um país tão plural como o Brasil.
Foi o ano em que uma adolescente trans foi pela primeira vez protagonista de um filme lançado comercialmente com Alice Júnior, de Gil Baroni; outra mulher trans, esta da vida real, integrante das Forças Armadas, teve sua história contada no documentário Maria Luiza, de Marcelo Díaz; um indígena protagonizou uma ficção que fala das dores da integração ao “mundo civilizado” branco e a nostalgia de suas raízes em A Febre, de Maya Da-Rin; e a atriz e diretora Bárbara Paz teve seu documentário indicado para tentar uma vaga no Oscar com Babenco – Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou. Por tudo isso, é preciso celebrar.
O racismo, velho problema estrutural e fundador do país, esteve com ênfase em histórias de ficção: os efeitos nefastos da escravidão e de uma malfeita abolição vista em Todos os Mortos, de Marco Dutra e Caetano Gotardo); o racismo velado enfrentado por negros no convívio com brancos em espaços privilegiados com M8: Quando a Morte Socorre a Vida, de Jeferson De; o mesmo racismo velado relatado em forma de documentário no Dentro da Minha Pele, de Toni Venturi e Val Gomes; a violência policial, sofrida em boa parte pela população negra, nas periferias das grades cidades em Nóis por Nóis, de Aly Muritiba e Jandir Santin; a dura vida dos imigrantes africanos numa megalópole como São Paulo em Cidade Pássaro, de Matias Mariani; o isolamento simbólico de um velho trabalhador negro numa comunidade que o repele em Casa de Antiguidades, de João Paulo Miranda Maria.
Como em todo bom cinema que se preze, diretores veteranos com vasta obra conhecida (Daniel Filho, Ana Luiza Azevedo, Sandra Kogut, Vicente Amorim, Hilton Lacerda) dividiram espaço com novos nomes que buscam encontrar sua voz no terreno do longa-metragem (Alice Furtado, João Paulo Miranda Maria, Djin Sganzerla, Rafael Gomes, Bárbara Paz). Um cinema vital e plural…que continue assim por muitos anos, vencendo as crises e dificuldades.