Inovar na festa e mirar o futuro – Os grandes desafios do Oscar

No dia 24 de fevereiro, os membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas e os organizadores da cerimônia do Oscar tiveram uma tarefa tão complicada quanto eleger os melhores filmes da temporada de 2018. Além de garantir o sucesso da noite considerada a consagração dos profissionais da indústria, o desafio era evitar que a audiência do evento reproduzisse os números decepcionantes do ano anterior, quando a transmissão foi vista pelo menor número de pessoas na história da premiação.  

E os esforços renderam resultados: segundo dados da Nielsen, a exibição atingiu a marca de 29,6 milhões de espectadores apenas nos Estados Unidos – um aumento de 12% em relação à última edição. No entanto, em vez de caracterizar um plano emergencial pela busca de maior conexão com o público, os caminhos trilhados no Oscar 2019 parecem revelar tendências que devem dar o tom de toda a premiação de agora em diante.

Tudo começou ainda em 2018, quando a Academia anunciou a criação da estatueta de Melhor Filme Popular. Polêmica, a decisão sofreu críticas tanto de votantes quanto de atores, roteiristas e diretores; e não demorou muito para que os organizadores desistissem da ideia. No entanto, a lista final de indicados para os prêmios passou o recado: o Oscar estava de olho nas grandes produções.

Entre os concorrentes a Melhor Filme, por exemplo, gigantes como Pantera Negra – o primeiro longa da Marvel a ser nomeado nesta categoria – e seus 1,3 bilhões de dólares arrecadados, e Bohemian Rhapsody, que angariou cerca de 870 milhões de dólares mundialmente, foram os que mais levaram estatuetas na premiação. Até Nasce Uma Estrela, que teve lucro superior a R$400 milhões de dólares, foi bastante citado pelos membros, reunindo um total de oito indicações.  

Diversidade? Sim ou não?

A cerimônia, em si, também foi repleta de mudanças. Mais curto e com menos apresentações musicais, o Oscar 2019 não contou com nenhum apresentador, o que não ocorria desde 1989. Mas além dos números do Queen e da dupla Gaga e Cooper, o que mais ajudou a prender a atenção do público durante as três horas de evento girou em torno de uma dúvida: Será que as escolhas da Academia fariam novamente algum comentário em favor da diversidade, como ocorrido com a consagração de Moonlight em 2017?  

A julgar pela lista de vencedores, sim e não. Sim, porque Ruth E. Carter e Hannah Beachler, de  Pantera Negra, entraram para a história como as primeiras mulheres negras a levarem a estatueta de Melhor Figurino e Melhor Direção de Arte, respectivamente. Ruth E. Carter foi uma das primeiras a subir ao palco na noite de 24 de fevereiro e era o bom prenúncio de que a Academia estaria mais atenta ao afro-futurismo que a saga sobre o Rei de Wakanda propõe quando o anúncio do melhor filme do ano fosse feito. Se, apesar de dar a Pantera Negra a primeira indicação ao Oscar de Melhor Filme para uma saga de herói, a Academia ainda não achasse que essa seria a vez de dar o prêmio máximo a um filme do gênero, havia ainda o contundente Infiltrado na Klan, de Spike Lee.

Mas o blockbuster acabou apenas levando os prêmios técnicos e Lee levou somente um merecido Oscar de Melhor Roteiro Adaptado por sua adaptação da história real de um policial negro americano que, nos anos 1960, desbarata uma ação da associação ultra-racista Ku Klux Klan. Alfonso Cuarón, por Roma (o grande favorito da noite), garantiu a quarta estatueta seguida de Melhor Direção para um mexicano (além de Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Fotografia). Mas foi o improvável Green Book – O Guia quem levou a melhor no quesito Melhor Filme e ainda garantiu a Mahershala Ali o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante, o que lhe deu também a marca de ser o único ator negro e muçulmano a levar duas estatuetas (a primeira foi em 2017 por Moonlinght).

Premiação sem ousadia

A propósito, se 2017 surpreendeu o mundo deixando o favorito e feelgood movie La La Land sem o título de Melhor Filme e premiando Moonlight, 2019 entra para a história do Oscar como  ano em que não se ousou. Apesar de uma lista de indicados diversa e promissora, com nomes como a mexicana Yalitza Aparicio (primeira atriz de origem indígena a ser indicada na categoria), as já mencionadas Ruth E. Carter e Hannah Beachler, ou até mesmo o Oscar de Melhor Curta Documentário para um “filme sobre menstruação”( Period. End of Sentence / Absorvendo o Tabu), a escolha de melhor filme sinalizou para um olhar convencional dos votantes.

Green Book, apesar de aparentemente imbuído do espírito libertário e do desejo de denúncia do racismo em uma América ainda dominada pela forte segregação racial, traça uma rota segura, em que Tony Lip, um nova-iorquino de origem italiana, iletrado e preconceituoso, ainda que bom coração (vivido por Viggo Mortensen, ótimo no papel e, muito por isso, capaz de dar carisma e nuances a seu personagem) “descobre” o racismo que permeia cada passo de seu patrão Don Shirley, um músico negro virtuoso que o contrata para ser um misto de motorista e guarda-costas em uma turnê pelo sul dos Estados Unidos, um espaço conservador e com muitas demonstrações de racismo (aqui um Mahershala Ali inspirado, circunspecto e ao mesmo tempo terno).

Em um ano em que a Academia tinha à sua disposição o pungente, e surpreendentemente divertido, Infiltrado na Klan, o poético Se a Rua Beale Falasse (de Barry Jenkins, diretor de Moonlight, que deu a Regina King o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante) e até mesmo Pantera Negra, escolher a narrativa convencional da figura do “salvador branco” (white savior) de Green Book foi, no mínimo, nada ousada e muito antiquada.

Não por acaso, Spike Lee se levantou e deu as costas para o palco do Teatro Dolby (antigo Kodak Theatre) ao ouvir o anúncio do prêmio para Green Book. Tentou deixar a cerimônia, mas foi impedido e só voltou a seu lugar quanto os agradecimentos da equipe do longa de Peter Farrelly terminaram. E fez declarações contundentes como sempre. “Me senti como se estivesse no Madison Square Garden e o juiz tivesse acabado de tomar uma decisão ruim”, declarou ao The Hollywood Reporter.

Se as indicações sugeriram que as reivindicações de movimentos como #OscarSoWhite (de 2015) e #OscarStillSoWhite (de 2016) tinham finalmente surtido efeito a longo prazo, o resultado da premiação revelou que o Oscar muda e está atento também a movimentos como o #TimesUp e #MeToo, mas que os passos dados em direção a esta mudança são mais lentos do que o desejado.

Como afirmou Lady Gaga em seu discurso de agradecimento pelo Oscar de Melhor Canção por Shallow:

“(…) Não é sobre ganhar. É sobre não desistir. Se você tem um sonho, lute, há uma disciplina para a paixão, o que conta não são todas as vezes que você é rejeitado e todas as vezes que você cai. Tem a ver com cada vez que você luta, onde você é corajoso e persevera.”

Gaga pode ter soado como uma treinadora motivacional, mas ela tem sua contundência. Vale lembrar que esta foi a edição com mais indicados a Melhor Filme que trouxeram personagens LGBTQ+: Bohemian Rhapsody (o vencedor Rami Malek/Freddie Mercury), A Favorita (com a vencedora Olivia Colman, que desbancou Glenn Close), Nasce Uma Estrela (com as drag queens da casa de shows onde canta Lady Gaga) e o próprio Green Book (ainda que a homossexualidade de Don Shirley seja abordada de forma muito superficial). No entanto, sempre alinhado à questão da qualidade dos concorrentes e premiados, o olhar da Academia deve estar atento para que, em futuras edições, aponte para o futuro e não tropece novamente na narrativa convencional que Green Book representa.

Afinal, assim como Pantera Negra é muito mais que um filme de herói, um Oscar é muito mais que um troféu. É termômetro de movimentações importantes na sociedade global e na própria indústria do cinema. Que venham o futuro e a próxima edição!

por Lucas Rodrigues e Flavia Guerra

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