Era O Hotel Cambridge e o Cinema da Contrapartida

Contrapartida. Ou o Cinema da Contrapartida. Esta talvez a grande sacada da diretora de arte Carla Caffé e da diretora Eliane Caffé para construir seu cinema. Sempre muito baseadas em um método de se fazer cinema que, segundo Eliane, é algo poderoso e que ainda faz o cinema ser transformador, pois modifica da um dos lugares em que as duas irmãs e parceiras de trabalho já filmaram. 

Um exemplo deste método, que nasceu quase que instintivamente, pode ser dado já no caso de Narradores de Javé, o segundo projeto em que as duas trabalharam juntas, depois da experiência de Caligrama, o primeiro filme da dupla, documentário de 1995, um ensaio poético com moradores de ruas de São Paulo que representam sua condição por meio de objetos, sons, escritos e autorretratos. 

“E esta contrapartida pode ocorrer nos mais diversos sets, desde os moradores de rua de Caligrama, a pequena cidade deNarradores de Javé e até a super populosa São Paulo. Mas imagina a gente chegar em uma zona de conflito, com um dinheiro, por mais que a gente fala que o orçamento é pouco, sempre é muito nestes lugares”, comentou a diretora de longas como Kenoma (1998), Narradores de Javé (2001) e Era O Hotel Cambridge (2017), que venceu diversos prêmios no Brasil e no mundo e levou os prêmios de Direção do público e da crítica do 44o Festival Sesc Melhores Filmes 2018.

Para Eliane, a sacada genial de Carla, que é diretora de arte com vasta experiência, foi perceber  que as equipes de produção dos filmes podem usar a contrapartida para  para fazer algo que a comunidade precisa. “E é aí que a gente amarra tudo porque a comunidade começa a ver a gente de outro jeito”, explica.

Para Carla, o problema no filme Narradores de Javé foi o lixo e a forma como a cidade se relacionava com seus objetos. “Era uma cidadezinha de 700 habitantes. Minúscula. Tínhamos uma dificuldade enorme de conseguir objetos para um caixinha com chaves, documentos… Porque a cidade simplesmente não tinha chaves, nem trancas nas portas. Esta era a realidade da cidade”, relembra a diretora de arte.

A cidade em questão era Gameleira da Lapa, subdistrito de outra. “Lá não tinha coleta de lixo há 11 anos. Era algo muito absurdo. Não dava nem pra filmar. A produção podia limpar todo dia onde a gente filmava. Em geral se faz assim quando se filma em algum lugar. Mas a gente foi trabalhando a ideia de ajudar a cidade para resolver o problema”, explicou Carla.

E assim a produção do longa começou a fazer coleta de ponto de lixo e a modificar a realidade da cidade. “Era preciso deixar o lixo em certos pontos. Fui falar com o prefeito da cidade para dizer que Gameleira precisava de coleta do lixo, conseguimos um caminhão”, explica. Além disso, a cidade não tinha fossas de esgoto. “Pois havia um ex-pedreiro na equipe de arte. E foi então decidido que toda casa em que fosse ser filmada uma cena do filme ganharia uma fossa. Acabou que todos queriam que a gente filmasse em suas casas”, relembra, com humor, a diretora de arte.

Cinema de Relacionamento e Troca

Para a dupla, além da contrapartida e da capacidade de transformar o ambiente em que filmam, o relacionamento e as trocas com as pessoas é o ponto mais rico de seu trabalho. A cada casa de Gameleira, a cada objeto colecionado e catalogado de Caligrama, cada realidade vivida em Era o Hotel Cambridge, não só a narrativa, mas as realizadoras saem mais completas e cheias de histórias para contar. E são estas trocas que tornam seus filmes tão verdadeiros e intensos.

“A gente acaba criando um vínculo muito próximo com a cidade. Conhece as histórias, os ganhos, as perdas, os dramas de cada um. Em Narradores o processo total levou quatro meses. Dois de pré e dois filmando. As histórias que o Narradorestem foram histórias que a gente colheu nestas expedições. Eram incrível a riqueza que existe nestes pedaços de interior. Os momentos mais fortes do filme são histórias ficcionalizadas a partir dos relatos de fato”, comenta Carla.

Para Eliane, há filmes que acontecem de maneira em que tudo flui naturalmente. E já há filmes que “vão à revelia. Vai dando tudo errado”. Com O Sol do Meio Dia foi assim. “Houve uma coisa estranha. Até roubo de negativo aconteceu dentro da pista do aeroporto do Rio de Janeiro. Tinha uma carga de peixes ornamentais e roubaram junto os rolos do filme”, relembra ela, sobre o filme estrelado por Chico Diaz e Luís Carlos Vasconcelos, que foi rodado em Belém do Pará. O longa venceu a Mostra de Cinema de São Paulo, onde foi eleito o Melhor Filme Brasileiro. “E acabou”, comenta Eliane.

Era o Hotel Cambridge – Um Divisor de Águas

Há também filmes que não só nascem de um processo natural e rico como persistem e acabam ganhando uma vida que vai além das telas. Este é o caso de Era o Hotel Cambridge. Além do poderoso relato que transita entre o mundo muito real e o fabular criado pela equipe do filme, há um rico material de making of sobre o longa além de um livro sobre o processo de realização do filme, lançado por Carla Caffé. 

“Este filme é um divisor de águas. É um processo que até hoje não acabou. Eu continuo com os refugiados. E a Carla continua no projeto da marcenaria”, declara Eliane. Para a diretora, o longa é nitidamente uma ficção, ainda que muitos o caracterizem como documental. “Para mim, muito da inspiração veio de um filme que chama Blog the Mobile, de Franz Pulsan. Nesse filme, o diretor viaja até as minas da África e começa a descobrir que o que alimenta a Guerra do Congo são os nossos celulares. É um genocídio o que acontece lá. Está acontecendo agora e ainda não acabou. É impressionante”, relata Eliane. “São crianças que fazem a extração deste minério, cobalto ou cassiterita, porque suas mãos são pequenas. As crianças trabalham sob metralhadoras porque têm de dar o que extraem. Imaginem!”, acrescenta.

Em tempo, Era o Hotel Cambridge retrata o cotidiano dos ocupantes do famoso hotel do Centro de São Paulo pelos movimentos de refugiados/imigrante em conexão com a luta de trabalhadores sem-teto que disputam uma moradia digna nas cidades do mundo inteiro. Híbrido entre documentário e ficção, o longa une personagens reais a atores profissionais que vivem no Hotel Cambridge, ocupado no centro de São Paulo. Neste caldeirão cultural, a mistura de visões de mundo, histórias de vida, idiomas,  culturas acaba por transformar o Cambrigde em um caldeirão cultural rico e único. 

O Vínculo é o cimento da espécie

Como outra referência para Era Um Hotel Cambridge, Eliane cita o longa Travessias. “É realizado com mulheres refugiadas. No Haiti, em 1936, quando houve a ocupação americana do país, foi muito brutal. Como o que a gente vê hoje na Síria, Palestina. Muitos haitianos fugiram para o norte. E na fronteira, tinham de falar a palavra ‘perejil’, que em espanhol significa salsinha. Os que não conseguiam pronunciar eram executados. Morreram mais de 10 mil falando a palavra perejil”, acrescenta a cineasta. 

É no sentido de interagir com os dramas trazidos por cada um dos personagens de Era Um Hotel Cambridge que Eliane quer dizer que o filme é um divisor de águas. “A gente entrou em contato com algo que estava debaixo do nosso nariz, em pleno centro de São Paulo. O mais louco é como a gente é muito fechado em nossas bolhas”, explica. 

Para ela, muito da riqueza do filme se deve ao fato de que ela e equipe criou vínculo com os personagens reais e ficcionais do longa (vividos por atores como José Dumont e Suely Franco) e estabeleceu as contrapartidas. “O vínculo é o cimento da espécie. Quando a pessoa está perto de você, há o cimento afetivo que é estar perto da espécie. Quando a gente faz o trabalho com as comunidades, começa a incorporar a afetividade da relação. Não é mais algo abstrato. É a Carmem Silva, a Bibicha. São pessoas específicas. E a gente compartilha tudo”, relata a diretora. 

Para Eliane, há o grau de sofrimento dos que lutam por um teto em São Paulo e o grau de indiferença que a nossa classe média tem em relação às questões sociais. “Para não paralisar, porque este sentimento paralisa, a gente acha uma forma de respirar, que é por meio do processo criativo.”

Oficina de atuação e dinâmicas

No caso de Era Um Hotel Cambridge, uma oficina de atuação e dinâmicas foi criada no próprio edifício ocupado. Nos encontros, reuniam-se refugiados de diversos países e os brasileiros. “Havia os que falavam francês, espanhol, criolo. E a gente conseguia se comunicar por meio dos jogos lúdicos. A gente fez a oficina porque tinha de achar aqueles personagens. Juntamos aquelas pessoas e propusemos o processo criativo. Todo domingo a gente ia lá e eles olhavam, olhavam. Como explicar para o cara que não fala português o que era uma ocupação?”, questiona Eliane.

Para que as pessoas não ficassem na passividade, muitas atividades eram propostas. Para explicar aos estrangeiros o que era uma ocupação, nada melhor que o exercício lúdico. “Por exemplo, eles deviam fazer de conta que eram um banco. E aí, nesta hora que propúnhamos o jogo, todo mundo queria brincar. O banco era sempre o corpo robusto, por exemplo. E com os corpos a gente ia montando uma cidade. Eles começaram a entender  o jogo e muitos começaram a entrar para o movimento”, explica Eliane.

Para a diretora, há sempre a percepção de que a pior coisa para um refugiado é ficar sozinho, pois a única maneira de sobreviver é por meio da união. E ela cita a luta das mulheres angolanas, que atualmente não estão conseguindo unir suas famílias no Brasil. “O embaixador atual de Angola está negando os vistos. E as mulheres se uniram. Formaram grupos de ajuda e discussão. E isso é muito importante e gratificante de ver acontecer”, completa.

Carla comenta que pouco a pouco o refugiados começaram a entender sua importância política. “O que há de comum com o refugiado da Síria, Congo…? A falta de todos os direitos básicos é mundial, global. É incrível como o sistema capitalista unifica a exclusão. Na hora em que se começa a ter esta percepção é algo muito potente.” 

Outro ponto de revolução em Era o Hotel Cambridge

Outra estratégia que tornou possível o processo de filmagem de Era O Hotel Cambridge foi, além de incorporar os refugiados para as dinâmicas e para a narrativa, instituir um projeto arquitetônico com os alunos da Escolda da Cidade em que Carla é professora.

“Reparem que a primeira coisa que o movimento de ocupação dos prédios abandonados faz quando ocupa é fechar. E vários arquitetos perguntavam para os ocupantes e para própria Carmem Silva  (líder da Frente de Luta por Moradia – FLM)  por que eles fechavam tudo e interrompiam os espaços de circulação”, observa Carla. “Então, o que fizemos? Como tanto o filme quanto a própria ocupação precisavam de uma lan house, nós também colocamos uma biblioteca logo na entrada da ocupação. Fizemos uma mega edição dos livros. E este foi um dos cenários que entregamos para a direção filmar”, explica.

Outro exemplo foi Carla entender, com sua equipe, que os moradores do Cambridge faziam o que se chama “shopping rua”. “Eles vão nas caçambas e pegam o material. É a tal da arquitetura efêmera. A gente foi fazer isso e fez tudo e fez tudo errado. Trouxe colchão. Colchão é sujo. Tem muita doença. Aprendemos que só se pega coisa de madeira, por exemplo. Estes pequenos grandes detalhes de se construir um cenário juntos fez toda diferença para o filme e para nós”, conclui a diretora de arte.

por Flavia Guerra

(Foto: Aline Arruda)

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