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Documentários de 2022 escancaram a intolerância em diferentes esferas sociais

Ao passar os olhos na lista dos 41 documentários nacionais que estrearam no circuito de cinema em 2022 – todos candidatos do Festival Sesc Melhores Filmes –, nota-se a expressiva quantidade de títulos que discutem as diferentes configurações de intolerância no Brasil. Tópicos relevantes como a censura, o preconceito e a violência a grupos minoritários foram predominantes nas produções documentais brasileiras lançadas no ano passado. Mera coincidência ou será que existe uma razão palpável para essa combinação temática?

Ainda que tais obras dialoguem entre si, é deveras instigante observar o posicionamento singular de cada filme na manifestação de suas ideias, a exemplo do desdobramento de causa e efeito. Por que a insistência dos documentários contemporâneos em abordar o tema da discriminação? As respostas são múltiplas e encontram respaldo em uma gama de justificativas sociopolíticas que, lamentavelmente, definem o Brasil – e o mundo – nos últimos anos.

Após o êxito de “O Processo” (2018), sobre o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, a cineasta Maria Augusta Ramos repercute mais um caso controverso de corrupção política no documentário “Amigo Secreto”: o escandaloso julgamento da Lava Jato. O filme apoia-se, principalmente, em materiais de arquivo previamente gravados sobre os desdobramentos que culminaram na prisão do atual presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, e a investigação jornalística que deflagrou um esquema parcial entre o juiz Sérgio Moro e o promotor do caso, Deltan Dallagnol – ambos atualmente ocupam cargos públicos no Congresso pelo estado do Paraná.

Também com forte viés político, o documentário dirigido e roteirizado pelo trio Ricardo Alves Jr., Dellani Lima e Henrique Zanoni, “Quem Tem Medo?”, entrevista artistas de teatro que tiveram seus projetos censurados. O documentário explicita a ascensão da extrema direita ao poder e, de quebra, denuncia os diversos mecanismos de censura artística no Brasil, seja por cortes financeiros, assédio judicial, campanha de difamação, entre outras estratégias.

Cena do filme "Transversais", dirigido por Émerson Maranhão. Foto: Divulgação
Cena do filme “Transversais”, dirigido por Émerson Maranhão. Foto: Divulgação

Inclusive, um projeto censurado pelo governo que conseguiu com muito esforço sair do papel em 2022 foi o documentário “Transversais”, primeiro filme do alagoano Émerson Maranhão. Originalmente, “Transversais” seria uma série com cinco episódios, posto que foi aprovado em um edital para produções de TVs públicas na categoria de diversidade de gênero. Entretanto, esse mesmo edital foi suspenso sem razão plausível pelo então presidente Jair Bolsonaro em uma live realizada em 2019. No fim, “Transversais” recebeu um novo formato, o de longa-metragem, e teve o seu lançamento oficializado no cinema, encantando plateias de todo o Brasil com as histórias afetuosas de cinco pessoas transexuais.

A letra T da sigla LGBTQIAP+ também está representada no documentário “Eu, Um Outro”, de Silvia Godinho. O filme acompanha o cotidiano de Lucas, Raul e Thalles, três homens trans que compartilham suas histórias e vivências no país que mais mata a população LGBTQIAP+ no mundo. Outro documentário que traz depoimentos de pessoas pertencentes a este grupo é “Deus Tem Aids”, codirigido por Fábio Leal e Gustavo Vinagre. Na contramão de tantos filmes que retratam o mesmo tema com doses de sentimentalismo, “Deus Tem Aids” convida oito depoentes para falar de suas vidas enquanto pessoas soropositivas. O documentário é assertivo em rejeitar qualquer tipo de pessimismo ou piedade na abordagem da Aids, e além de ser informativo, sóbrio e empático, é esclarecedor quanto aos preconceitos e falhas das políticas públicas de saúde.

O retrato das comunidades indígenas também está presente em pelo menos três dos documentários brasileiros do ano passado. “O Território”, de Alex Pritz, acompanha a luta do povo uru-eu-wau-wau contra a ação de posseiros, garimpeiros e outros invasores de suas terras, na Amazônia brasileira. O filme também mostra o trabalho exemplar da indigenista e defensora da floresta Ivaneide Bandeira Cardozo, popularmente conhecida como Neidinha Suruí. Outra mulher homenageada pelos seus esforços no apoio aos povos originários é a fotógrafa Cláudia Andujar, figura central do documentário “Gyuri”, de Mariana Lacerda. O longa mostra como Andujar usou a sua arte para evidenciar a vulnerabilidade da aldeia yanomami, além de visitar o passado da artista na Suíça enquanto sobrevivente da Segunda Guerra Mundial.

“Segredos de Putumayo”, de Aurélio Michiles, também é um grande destaque entre os lançamentos de 2022. O documentário se vale de arquivos históricos, como vídeos e fotografias, enquanto narra o angustiante diário de viagem do cônsul britânico Roger Casement, que, em 1910, empreendeu uma investigação sobre as denúncias de crimes contra comunidades indígenas cometidos por uma empresa privada. A sua descoberta culminou no extermínio e trabalho escravo de milhares de indígenas na região do Rio Putumayo, na selva amazônica.

Para finalizar, dois documentários que se aproximam narrativamente e merecem reconhecimento pela importância do tema são “Se Eu Contar, Você Escuta?”, de Renata M. Coimbra, e “Nunca Mais Serei a Mesma”, de Alice Lanari. Nessa mesma esfera de discriminação a minorias, ambos os filmes retratam situações de violência de gênero, com relatos de pedofilia, assédio sexual e feminicídio. Nas duas produções, o enfoque é em como esses episódios marcaram a vida das sobreviventes e onde elas encontraram refúgio para superar a dor de terem sido vítimas apenas por serem mulheres. O vencedor do 49º Festival Sesc Melhores Filmes na categoria Melhor Documentário será anunciado na cerimônia de premiação no dia 5 de abril, às 20h30, no CineSesc. A entrada é gratuita e o ingresso deve ser retirado com 1h de antecedência. A programação completa do festival, de 6 a 26 de abril, vai contar com documentários nacionais na grade e será revelada na próxima semana.

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