Poucos filmes são capazes de mobilizar a plateia como Toni Edermann. O longa da alemã Maren Ade competiu à Palma de Ouro do Festival de Cannes em 2016 e conseguiu o feito de ser aplaudido em cena aberta e levar a plateia às lágrimas de tanto rir em plena sessão para a crítica especializada, em geral rigorosa e pouco afeita a demonstrações muito ousadas de carinho pelos filmes.
A sessão de gala de Cannes não foi diferente e Maren deixou o Palais des Festivals ovacionada. Não foi o suficiente para que a cineasta saísse do festival com uma Palma, mas o filme concorreu ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro pela Alemanha e conquistou e ainda conquista público em todo o mundo. Este foi o caso da sessão CinePsiquê, projeto que une o CineSesc e o Instituto de Psiquiatria da FMUSP, ocorrida durante o 44o Festival Sesc Melhores Filmes.
A sessão contou com um bate-papo com participação de Daniel Martins de Barros, psiquiatra do IPq-FMUSP e bacharel em Filosofia; Christian Dunker, psicanalista e professor titular da Universidade de São Paulo; e Sandro Macedo, jornalista da Ilustrada da Folha de São Paulo.
E na sessão do 44o Festival Sesc Melhores Filmes o público também embarcou sem amarras na surreal história e um pai (Winfried/Peter Simonischek) que tenta reatar laços com a filha executiva e distante (Ines/Sandra Hüller). Mas se há tantas histórias de pais e filhos tentando retomar suas relações desgastadas no cinema, o teria feito a diretora alemã Maren Ade para que Toni Erdmann, apesar de não declaradamente ser uma comédia rasgada, ser capaz de provocar tamanha reação nas plateias?
Talvez seja justamente o estranhamento que o personagem que Winfried cria para questionar o status quo em que vive a filha Inês provoca. Toni Edermann é um alter-ego, um suposto consultor que, por trás de sua seriedade, comete os maiores absurdos. E também por trás de seus hilários dentes postiços, peruca, armadilhas e jogos que propõe à filha, também fala muito seriamente sobre uma ordem de vida neoliberal, voraz, que impõe o poder e o capital sobre “novos territórios” (no caso, a filha mora em Bucareste e está prestando consultoria para uma grande empresa que está prestes a demitir centenas de trabalhadores).
A caricatura realça algo que já existe
É justamente o jogo entre o absurdo tido como normal e a loucura proposta por Toni que desloca a plateia de seu lugar de conforto, provoca risos (ora espontâneos ora nervosos) e faz com que o público ria também de suas neuroses pós-modernas.
Para Christian Dunker, uma das grandes chaves da narrativa está justamente na criatura caricata que Winfried cria para conseguir novamente acessar a filha. “A caricatura ressalta algo que já está lá. É um filme de conversão de um personagem que resolveu um transtorno de personalidade, o de transtorno de personalidade histriônica”, comenta o psicanalista.
Sandro Macedo observou que Inês, apesar do estranhamento, aceita jogar o jogo proposto pelo pai e o desafia o tempo todo. Justamente porque para que a relação seja retomada é preciso que a filha se engaje na dinâmica criada pelo pai. “Toni chama para si a atenção. Quer provocar um certo desagrado, um mal estar. Mas tudo isso tem uma função, ele faz justamente isso para chamar atenção e produzir uma espécie de retorno da filha”, explica Dunker.
Para o psicanalista, o clímax desta dinâmica é a própria retomada do amor próprio de Inês, após tantos jogos, sejam propostos pelo pai seja pela suposta lógica normal do cotidiano de pressão e frieza empresarial em que ela vive e que leva extremamente a sério.
Com humor e sem heróis
Nesta dinâmica, o questionamento cai sobre quem de fato é o herói da história. “O pai se torna uma referência para uma vida sem sentido. E seu histrionismo está mostrando para a gente que é uma vida pobre, sem sentido e vazia. Como a gente consegue retomar isso?”, questiona Dunker.
Já o psiquiatra Daniel Martins de Barros observou que o ápice do reencontro e da conversão de Inês se dá justamente em uma cena em que ela se despe dos artifícios que o mundo contemporâneo e corporativo dá a ela. Enquanto isso, o pai, que em seu cotidiano é um personagem muito mais despojado e despido de protocolos, está coberto e protegido, por uma fantasia.
“Quando ela está totalmente desnuda, pelada. E ele totalmente coberto. Isso fala muito das máscaras que usamos no cotidiano. No mundo corporativo, que é nosso dia-a-dia. No trabalho a gente não pode chorar quando está triste, bater no chefe… A gente tem a persona que tem que esconder atrás dela. E neste momento chave do filme, os papeis se invertem”, observa o psiquiatra.
Toni Edermann é de fato um filme engenhoso que toma o tempo necessário para desnudar não só seus personagens mas também a plateia diante do quão surreal e ao mesmo tempo comum a vida pós-moderna pode ser. E o humor é uma das melhores formas de ler o cotidiano e, mais que isso, sobreviver a ele.
E nesta lógica, as gerações mais experientes, como o pai de Inês, trazem um olhar crítico que pode tocar os mais jovens. Para Dunker, há também em Toni Edermann a representação de um novo conflito de gerações. “No filme, é a filha, mais jovem, que representa a ordem. O pai é quem questiona. Esta inversão dos lugares revela que os pais para esta geração não têm uma resposta razoável para o que é a felicidade”, observa ele.
É muito por isso com ironização e desprezo que o filme apresenta Winfried. Ele é o bufão, o palhaço que não traz nenhuma verdade no teu estilo de vida. Mas, aos poucos, Inês percebe que, por trás de suas máscaras que desafiam as máscaras do mercado, ele fala muito mais sério do que ela pensa. “É como se ele dissesse a ela: ‘A tua roupa está te impedindo de se questionar sobre para que serve tudo isso.’ O que ele propões aparentemente não têm sentido, mas, em um segundo tempo, adquirem todo um significado. É um conflito de gerações em que o vitorioso não é o jovem”, conclui o psicanalista.
por Flavia Guerra
(Foto: imagem de divulgação do filme Toni Erdmann)