Um mundo intenso e desafiador

Poucos gêneros do cinema são tão inventivos e passaram por tantas mudanças nos últimos anos quanto o documental. Dos documentários políticos e sociais aos mais pessoais e ensaísticos, os temas são muitos e as formas de abordagem são tão diversas quanto os desafios de representar a realidade no mundo contemporâneo. 

Talvez tomar emprestado o nome do mais recente filme de João Moreira Salles seja a melhor forma de resumir o que 2017 significou para os fãs de documentários: No Intenso Agora. Foi intensa a produção do ano que passou. Tão intensa quanto os debates que surgiram a partir de obras essenciais como MartírioEu Não Sou Seu NegroDivinas Divas13a Emenda, o próprio No Intenso AgoraFogo no MarHuman FlowExodusArpilleras – Bordando a ResistênciaO Pacto de Adriana, entre tantos outros que tiram o expectador do lugar de conforto e o conduzem a uma jornada pelos pontos mais distantes do planeta e pelas realidades mais diversas.

O cineasta e indigenista Vincent Carelli assinou com Martírio a obra que coroa toda uma trajetória de apoio à luta indígena por seu patrimônio cultural, territorial e por sua sobrevivência. Além de ter criado o Vídeo nas Aldeias, que capacitou indígenas de diversas regiões do País a se tornarem cineastas, Carelli dirigiu filmes como Corumbiara (2009), Segredos da Mata (1998) e O Espírito da TV (1990), entre tantos outros. Em Martírio, ele revela a luta secular dos Guarani-Kaiowá por sua terra e sua existência, sempre ameaçada por um processo de crescimento violento e genocida que se estende desde o Brasil Colônia até o agronegócio atual. Levou merecidamente o Prêmio Especial do Júri no Festival de Cinema de Brasília 2016, além do Prêmio do Júri Popular no mesmo festival.

Na mesma seara da árdua tarefa de sobreviver e resistir, Taego Awã, de Henrique e Marcela Borela, mostra a trajetória da batalha pelo reconhecimento e pelas terras de direito dos índios Ãwa. O longa usa como ponto de partida as imagens em VHS que Marcela encontrou nos arquivos da Universidade Federal de Goiás, onde estudou Comunicação Social. Cinco fitas que trazem cenas de uma situação nada idílica, registradas no final dos anos 1980. No entanto, as cenas do passado revelam as tantas violências que os Awã também enfrentaram. Marcela e seu irmão, o antropólogo Henrique Borela, decidiram levar esse material, entre outros, para os Ãwa e realizar, a partir daí, um registro atual, em 2014. O que resulta deste choque entre passado e presente é um documentário revelador, que diz tanto sobre a história não só dos povos indígenas mas de todo um Brasil que insiste em fechar os olhos para questões dolorosas, mas cruciais se quisermos começar a desenhar um novo futuro.  

A resistência como ponto em comum

É a resistência um dos pontos em comum dos documentários que marcaram 2017 como um ano em que o real muitas vezes superou a ficção. Em Arpilleras – Atingidas por Barragens Bordando a Resistência, o intertítulo não é mero jogo de palavras. Por meio da arpillera, técnica de bordado que artesãs chilenas usaram para denunciar a violência da ditadura militar no país, o filme traz as vozes de dez mulheres que tiveram suas vidas afetadas pela construção de hidrelétricas em diferentes regiões brasileiras. 

A trama da narrativa, que também denuncia o desrespeito aos direitos humanos e o impacto sócio-ambiental que cada hidrelétrica causou, é construída pela confecção de uma arpillera. Cada mulher costura uma parte da história e da arpillera e, assim, um painel sobre a luta e a resistência se constrói.

O recurso narrativo poético e criativo também é ferramenta importante para se denunciar, com perspectiva história, as tantas violações que os negros sofreram no processo de construção da sociedade norte-americana. É por meio da obra inacabada Remember This House, do escritor James Baldwin, com narração do ator Samuel L. Jackson, que a luta dos negros por direitos civis nos Estados Unidos, desde os anos 50 até hoje, revela-se em Eu Não Sou Seu Negro.

Indicado ao Oscar de Melhor Documentário em 2017, o longa de Roul Peck se uniu a 13a Emenda e O.J.: Made In Americapara formar uma trilogia sobre a história do povo negro, que não só diz respeito aos Estados Unidos mas que reverbera globalmente em tempos de movimentos como Black Live Matter (Vidas Negras Importam) e luta contra o racismo. 

Resistência – A luta por um lugar no mundo

Em outra direção, o brasileiro Era Um Hotel Cambrigde se equilibra no limiar entre a ficção e o documental para melhor narrar a luta dos que resistem em São Paulo em busca de um lugar para viver. A fabulação criada por refugiados africanos, do Oriente Médio e do nordeste brasileiro tanto nos momentos em que conversam com as famílias que ficaram em seus lugares de origem quanto nas dinâmicas teatrais orquestradas pelo personagem vivido pelo ator José Dumont ou nas cenas com a atriz Suely Franco. Neste lusco-fusco entre o real e o imaginado, as bases são sempre fortes e o espectador muitas vezes não sabe se vive ou sonha o mesmo sonho dos moradores do Cambridge. 

A fabulação também é o fio que perpassa a narrativa de Estopô Balaio, inventivo documentário de Cristiano Burlan sobre a relação dos moradores do Jardim Romano em São Paulo e as águas das enchentes que ano após ano invadem suas casas e suas vidas. Resistir é também criar sua própria história.

Em busca de uma nova história também estão os refugiados de Exodus – De Onde Eu Vim Não Existe Mais, de Hank Levine. Diferentemente dos moradores do Hotel Cambridge, os personagens de Exodus estão em diversos países. Mas em comum, todos têm o desterro e o sonho de reencontrar um lar, tanto real quanto simbólico, em países como a Alemanha, Argélia, Brasil, Canadá… Seja onde for, e de onde vem, a busca por um lugar seguro é o ponto comum de quem é obrigado a deixar sua história, seu povo e sua terra. De Exodus a Human Flow: Não Existe Lar Se Não Há para Onde Ir, de Ai WeiWei, as correntes migratórias de povos ameaçados em diversas regiões do planeta se encontram na busca por um lugar seguro em um mundo cuja História é marcada por insegurança e guerras. 

Crônicas da Memória ainda Presente

Se pensar o mundo contemporâneo passa necessariamente pelo exercício de pensar a História, o cinema documental é ferramenta importante para isso. Em Crônica da Demolição, de Eduardo Argiles, narra uma história poucas vezes retratada: a memória que se esvai com as tantas mudanças arquitetônicas por que as cidades brasileiras passam. Partindo da história do histórico Palácio Monroe no centro do Rio de Janeiro, que já foi sede do Senado Federal, o filme é engenhoso ao nos instigar a pensar sobre as diretrizes que ditam muitas vezes a vida e a história social, política e urbana do Brasil. 

Refletir sobre a História contemporânea é um dos temas de No Intenso Agora, de João Moreira Salles. Ainda que parta de um ponto pessoal – as imagens filmadas por sua mãe na China revolucionária dos anos 60 -, o diretor cria um mosaico de imagens de arquivo que funciona como uma reflexão sobre a sociedade contemporânea e seus sonhos, ora possíveis, ora impossíveis, de um mundo melhor.

Mas em que circunstâncias os registros foram feitos? Que influência na perspectiva de quem filme e de quem sonha há o fato de se filmar em uma democracia, uma ditadura ou um momento de ebulição como o Maio de 1968 na França? É a narração de Moreira Salles que costura as imagens e os questionamentos. O que se revela é que o passado é intenso e ainda presente nos questionamentos e sonhos atuais de chineses, franceses, brasileiros, americanos, africanos…

É o sonho de um novo mundo o ponto alto de Nunca Me Sonharam, dirigido por Cacau Rhoden. Ao ouvir o que estudantes, especialistas e professores de escolas públicas de diversas regiões do Brasil tem a dizer, o longa aponta para um futuro também intenso e repleto de desafios que, com investimento e valorização da educação, podem ser vencidos. O cinema vai continuar tratando com engenhosidade, refletindo e revelando este mundo intenso, urgente e rico.

Destaques desta safra de documentários poderão ser conferidos a partir de 5 de abril no 44o Festival Sesc Melhores Filmes.

Por Flavia Guerra

(Imagem: divulgação do filme Martírio)2

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