Paridade. Se há uma palavra em voga quando o assunto é o cinema e as mulheres no cinema, paridade de fato é a palavra do ano. Quiçá da década. De festivais de cinema que ditam tendências e já possuem medidores eficientes quando o assunto é paridade racial, social e de gênero, como Sundance, aos festivais brasileiros, que buscam cada vez mais estar atentos à busca do equilíbrio entre o número de homens e mulheres à frente e atrás das câmeras, a igualdade é tão diversa quanto o cinema contemporâneo.
Se há muito o que se comemorar, afinal, as mulheres à frente das câmeras nunca foram tão presentes e ativas, ainda há um longo percurso a ser traçado em busca da sonhada paridade. E são ocasiões como o mês de março que trazem a discussão para o primeiro plano e fazem com que as mais recentes ações em diversas partes do mundo ganhem a atenção devida.
No recém encerrado festival de Berlim (20/2 a 1/3), mulheres de todo o mundo se reuniram em diversos encontros para debater a questão, trocar experiências, citar ações e traçar metas para o futuro. Na Berlinale, segundo dados oficiais do festival, do total de 342 filmes exibidos em todas as seções, 45% foram dirigidos por mulheres. Quando se concentra o foco na Competição Oficial, o número cai para 33% (6 dos 18 longas selecionados). É por isso que encontros como os promovidos pela Pro Quote Film, entidade alemã que luta pela igualdade de oportunidades no audiovisual, que reuniram mais de 50 outras entidades e profissionais de todos os continentes, são necessários e tão produtivos. “A situação das mulheres do cinema é mais ou menos a mesma em todo o mundo. Elas têm acesso limitado aos recursos para se fazer cinema. Na Alemanha, somente 10% dos recursos vão para projetos dirigidos por mulheres e mulheres produtoras têm apenas metade dos orçamentos”, declarou Barbara Rohm, chairwoman do Pro Quote Film ao abrir o “Mudando a Narrativa – Segundo Debate Internacional na Berlinale 2020”.
“Quando mulheres aparecem nas telas, elas são em geral retratadas de uma forma estereotipada, sexista e distorcida. À medida que as atrizes envelhecem elas desaparecem das telas. Esta exclusão das histórias e da vida de metade da população mundial tem imensos efeitos negativos, especialmente à medida em que as gerações mais jovens são privadas de modelos a serem seguidos. Afinal, o que elas não veem elas não podem ser. Em todo o mundo, organizações têm realizado ações para promover oportunidades iguais e assim teremos mais mulheres na frente e atrás das câmeras”, completou Barbara.
Lugar de honra: o Brasil e cineastas indígenas
Se na plateia do debate em Berlim, havia produtoras de dezenas de países, incluindo o Brasil, no palco, dois nomes brasileiros muito significativos tiveram lugar de honra: as cineastas Patrícia Ferreira Pará Yxapy, que apresentou a obra Carta De Uma Mulher Guarani Em Busca De Uma Terra Sem Mal, na sessão Forum Expanded da Berlinale 2020; e Graciela Guarani, da Olhar da Alma Filmes. Ambas falaram não só de suas origens e da luta como cineastas, mas também do cinema e da questão indígena no Brasil. “Estar aqui é muito importante. Não só como artista indígena mas também representando as mulheres indígenas e brasileiras. Há muitos anos, aliás, quero fazer um filme sobre as mulheres guarani, mas atualmente não temos recursos. É preciso ter recursos para retratar a realidade guarani”, observou Patrícia.
Quando questionada sobre sua percepção a respeito do futuro do cinema no Brasil, Patrícia foi cuidadosa, mas otimista: “Olhando estas mulheres maravilhosas, que nos dão esta força e esta vontade de continuar lutando, penso nos jovens. Eles estão lutando não só com o cinema, não só com o audiovisual, mas também cada povo indígena no Brasil está lutando com o que tem. É o que nos mantém adiante. Eles estão mais fortes e não vão desistir”.
Graci Guarani viu no cinema uma das principais ferramentas dessa luta: “Minha inquietação hoje é o futuro do meu povo e de todos os povos indígenas que vivem no Brasil. Fico preocupada porque cada vez mais surgem medidas contra os povos indígenas, contra as florestas, nossas terras e até contra nossa vida. Ao mesmo tempo, vejo o audiovisual e o cinema como uma fagulha de esperança porque também é uma forma de denúncia e resistência para mostrar ao mundo o que estamos sofrendo. E isso tem sido feito pelos jovens. O jovem é o futuro mas também é o agora”.
Não há igualdade sem diversidade
Como já é consenso em ações pela paridade em todo o mundo, não é possível falar de igualdade sem diversidade. E é por isso que o cinema indígena ganhou espaço de honra em Berlim. Em Sundance, a propósito, o Sundance Institute (que ao longo do ano promove ações, possui programas de bolsa e mentorias para cineastas de todo o mundo) não só possui um departamento dedicado ao cinema indígena como também às mulheres. E a interseção entre as ações de cada um dos departamentos é crucial para os trabalhos do instituto. Não por acaso, quem abriu o encontro “Mulheres em Sundance” em janeiro deste ano foi a cineasta indígena Shaandiin Tome, bolsista do Programa Indígena de Sundance. “O trabalho do Sundance Institute foi decisivo para minha carreira e retratar não só nossas histórias como ser uma cineasta indígena muda tudo, muda a história”.
O festival norte-americano, aliás, é o que mais se aproxima da paridade de fato. Dos mais de 200 filmes selecionados em 2020, 46% foram dirigidos por mulheres (e 38% por cineastas que se declararam não brancos/as). Entre os temas abordados pelas diretoras, sempre questões contundentes sobre a sociedade contemporânea. Um deles, aliás, premiado em Sundance, Never Rarely Sometimes Always, de Eliza Hittman, também integrou a competição oficial em Berlim e levou o Urso de Prata de Melhor Filme.
Meu Nome é Bagdá e o olhar atento sobre o contemporâneo
O olhar das diretoras sobre as questões do mundo extrapola os números e nos revela histórias que estiveram sempre presentes, mas que muitas vezes não mereceram olhar mais atento. Este é o caso de Meu Nome é Bagdá, de Caru Alves de Souza. O longa contra a história de Bagdá, uma adolescente da periferia de São Paulo que anda de skate e quer ser respeitada em sua vontade de ser o que é, tanto por seus companheiros de pista, quanto pela sociedade. A combinação entre a direção de Caru, a atuação de Grace Orsato (a Bagdá) e o tratamento de uma realidade tão brasileira que dialoga com jovens do mundo todo deu a filme o prêmio principal da Mostra Generation da Berlinale, dedicada especialmente ao público jovem.
Vale ressaltar que, dos 19 filmes brasileiros em todas as seções da Berlinale 2020, entre produções majoritariamente nacionais e coproduções, as cineastas assinaram oito títulos, marca que certamente merece ser comemorada, mas que ainda revela que, apesar da diversidade, o Brasil está longe da almejada paridade.
Segundo dados levantados pela Ancine (Agência Nacional do Cinema), as mulheres são responsáveis por 20% dos títulos dirigidos para cinema e TV no país em 2018. Em 2019, o números não foram levantados e é neste fato que se encontra um dos grandes desafios. Números não revelam tudo, mas são cruciais para que se estabeleça uma métrica de fato e se proponham ações para a mudança.
Se Ela pode Ver, Ela pode Ser
Como afirma Geena Davis no documentário Isto Muda Tudo (This Changes Everything), que estreou mundialmente no Festival de Toronto 2018, foram os números que a equiparam para debater com os grandes estúdios o fato de que até mesmo nas histórias infantis o número de personagens femininas era muito menor que o de personagens masculinos.
Geena observa que, quando começou a dialogar com os estúdios e os criadores, não havia uma ideia clara de que era tão diferente assim o número entre personagens masculinos e femininos. E foi pensando nisso que ela criou, há mais de 15 anos, o Geena Davis Institute on Gender in Media (https://seejane.org). Desde então, ela e sua equipe levantam números e apresentam estatísticas que ajudam a mudar a narrativa do cinema e da TV, a reduzir estereótipos e a criar novas histórias para que meninas se vejam em papéis diversos.
Esta ação do Instituto Geena Davis extrapola o conteúdo infantil e tem efeitos não só em Hollywood mas também internacionalmente. É neste sentido que o longa, dirigido por Tom Donahue e produzido por Geena (entre tantas outras), escreve um novo capítulo na história do cinema e da representação da mulher no cinema. Isso Muda Tudo ainda traz ainda nomes como Natalie Portman, Meryl Streep, Jessica Chastain, Reese Witherspoon, Cate Blanchett e um grupo de mulheres pioneiras que movimentaram Hollywood para lutar pela paridade.
Voltar às pioneiras de fato e lembrar que, nos primórdios de Hollywood, as mulheres foram cruciais para o desenvolvimento do cinema nos Estados Unidos e que estavam em todas as funções é fazer jus a uma história que há muito tempo foi apagada. “Havia mais mulheres produtoras, diretoras, em posições de poder antes de 1920 do que qualquer outra época na história do cinema. Na época, eu pensava em estudar cinema eu ia às aulas e nenhum dos meus professores tinha me dito algo sobre isso. Não havia nada nos livros. Por quê? Porque os livros tinham a história de Hollywood escrita por homens nos anos 1940 que não conheciam essas mulheres”, afirma a cineasta e autora Alice Acker no revelador E A Mulher Criou Hollywood.
Dirigido por Clara Kuperberg e Julia Kuperberg, o longa estreou no Festival de Cannes 2016 e surpreendeu até mesmo profissionais do cinema ao revelar como mulheres cineastas foram cruciais para a criação de Hollywood e nomes como Lois Weber, Mary Pickford, Alice Guy-Blaché, Dorothy Arzner, entre tantas outras, foram praticamente esquecidos até mesmo por estudiosos da história do cinema.
“No início do cinema, as mulheres era agentes importantes, nos estúdios, em todas as funções. Mas quando o dinheiro entrou, as mulheres foram excluídas”, afirma Geena, que conta também que o título do filme (Isso Muda Tudo) veio justamente da desejada inclusão de personagens femininas em histórias novas depois do fenômeno Thelma & Louise (dirigido por Ridley Scott em 1991 e escrito por Callie Khouri, que levou o Oscar de Melhor Roteiro Original em 1992). Na época, a crítica e a mídia apostaram que um filme como aquele mudaria tudo e haveria, então, quase que imediatamente, uma revolução com filmes sobre mulheres esportistas, cientistas, de ação e afins. “Mas fiz em seguida Uma Equipe Muito Especial e depois disso, nada mudou”, conta a atriz.
Na verdade, muito mudou, mais lentamente do que o imaginado. Mas finalmente, em 2017, o primeiro filme solo de uma super heroína foi realizado e dirigido por uma mulher (Patty Jenkins dirigiu Mulher Maravilha). Em 2019, a Capitã Marvel ganhou as telas. Em 2021, Mulher Maravilha 1984 vem aí. E tantos outros filmes internacionais e nacionais escrevem novos capítulos da história da representação feminina nas telas e nos bastidores do cinema.
Ao mesmo tempo, apesar de Adoráveis Mulheres ter sido indicado ao Oscar de Melhor Filme, nenhuma diretora foi indicada na categoria de Direção. Tal fato motivou a atriz Natalie Portman a usar uma capa com os nomes de diretoras que poderiam ter sido indicadas, tais como Greta Gerwig, de Adoráveis Mulheres, Lulu Wang, de A Despedida, e Lorene Scafaria, de As Golpistas.
As mudanças continuam e cada ação, seja em março, em Sudance, Berlim, Cannes, no Oscar, na Mostra de Cinema de São Paulo ou no Fórum das Lideranças Femininas do Audiovisual Brasileiro (cuja primeira edição foi realizada em 2019 e a segunda já está sendo planejada). Das pequenas ações como a de Natalie, aos grandes encontros e políticas públicas, passando pela tão necessária estatística, o fato é que as mulheres hoje se veem nas telas. E se não se veem, elas questionam, cobram, debatem e agem. O futuro do cinema de fato não é somente feminino. É diverso, plural, colorido e, se podemos nos ver a todos e todas, podemos ser!
Flavia Guerra