O mundo contemporâneo, suas questões e desafios rendeu um ano intenso para a produção cinematográfica internacional e nacional. Do vencedor da Palma de Ouro Eu, Daniel Blake ao também premiado Corpo Elétrico e o documentário No Intenso Agora, entre tantos outros, o cinema, seja mais comercial seja mais autoral, manteve as lentes direcionadas e os pés fincados na realidade de uma sociedade que enfrenta crises, guerras, sofre mudanças sociais e comportamentais.
Reafirmando sua vocação de refletir os problemas do homem e de sua época, mesmo em filmes históricos, o cinema em 2017 presenteou o público com uma safra de títulos comprometidos com as movimentações políticas e econômicas que interferem na vida social nos mais diversos pontos do planeta. Em fevereiro de 2017, Berlim viu o húngaro Corpo e Almatrazer uma história de amor em tempos de neoliberalismo e isolamentos, mesmo com todos conectados a seus celulares em tempo integral. A decisão do júri por dar o Urso de Ouro da Berlinale ao longa da cineasta Ildikó Enyedi foi simbólica em um festival de tradição política.
A vida em tempos de neoliberalismo, grandes movimentações humanas como as novas levas de imigrações para Europa e Estados Unidos em busca do sonho de uma vida melhor foram, se não a história principal, pelo menos o subtexto importante de longas como A Trama, de Laurent Cantet, que retratou os dilemas de jovens franceses em uma sociedade que se transformou, e transforma, rapidamente. A mesma juventude, muitas vezes desconectada apesar de seus smartphones em punho, ganhou o primeiro plano também em Bom Comportamento, de Ben e Josh Safdie, uma das melhores performances de Robert Pattinson. O longa concorreu à Palma de Ouro em Cannes em maio, mas, apesar de ser controverso em sua abordagem do “lado B” do sonho americano nova-iorquino, saiu sem prêmios do festival.
O mesmo sonho americano é perseguido pelo lavador de pratos sonhador de Últimos Dias em Havana, de Fernando Perez. Destaque no Cine Ceará 2017, o longa retrata a sociedade cubana com a fidelidade poucas vezes vista no cinema atual. Ao refletir sobre a ideia de uma vida melhor em uma sociedade americana que só existe nos sonhos do protagonista, a trama também faz pensar sobre os conceitos de globalização e neoliberalismo propagados mundo afora. O americano A Qualquer Custo provou, numa trama afiada e ritmo frenético, que os “excluídos de seu próprio país e do sistema financeiro dominante” também vivem um pesado e não o tal sonho. Indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Original, o longa de David Mackenzie alcança o feito raro de ser um autêntico cinema que entretém e incomoda.
Quem também competiu em Cannes, mas em 2016 e também saiu sem premiação, foi A Garota Desconhecida, dos sempre contundentes Jean-Pierre e Luc Dardenne. O drama da médica vivida por Adèle Haenel tem o preconceito e a realidade dos imigrantes na Europa como ponto sensível e crucial em uma sociedade em que a indiferença muitas vezes é predominante.
A intersecção entre as rotas migratórias internacionais e as questões arraigadas da sociedade brasileira nunca foi tão bem delineada como em Era o Hotel Cambrige, de Eliane Caffé. O filme une imigrantes africanos, do Oriente Médio, brasileiros, latino-americanos que atuam e também vivem seus dramas autênticos diante da ameaça constante de despejo e de uma reintegração de posse violente do prédio que ocupam em São Paulo. Ser estrangeiro e se adaptar aos costumes e à sensação de não pertencimento também é o foco de A Cidade onde Envelheço. Grande vencedor do Festival de Brasília 2016, o longa de estreia da diretora Marilia Rocha, acerta ao narrar a ficção com bases nas histórias reais das atrizes portuguesas Francisca Manuel e Elizabete Francisca na Belo Horizonte contemporânea.
Mas talvez sejam Exodus – De Onde eu Vim Não Existe Mais, de Hank Levine, e Human Flow – Não Existe Lar Se não Há para Onde Ir, do multi-artista Ai Weiwei, que melhor transmitem os dramas pessoais e coletivos dos desterrados do mundo moderno. Diferentes na abordagem e na escolha das histórias, mas com grandes pontos de contato no que diz respeito à busca de uma terra e da paz necessária para se ter um lar, os dois documentários são cruciais para se entender nossa sociedade global. Para Ai Weiwei, a grande motivação que o fez rodar 23 países foi a curiosidade de entender o que obriga milhões de pessoas a deixarem suas casas, famílias, países em uma busca muitas vezes infrutífera por um novo lar. “A crise de refugiados não é apenas política, mas também moral e humana”.
Por Flavia Guerra
(Imagem: divulgação do filme Eu, Daniel Blake)