Filme de abertura, “Medusa” externaliza a opressão social da mulher brasileira

Por Pedro Strazza

É uma noção mais ou menos geral que o cinema brasileiro se faz na raça. Sobretudo pela eterna batalha para arrecadação de fundos que possam financiar e ajudar a realizar projetos cinematográficos, e em especial pelo desafio de continuidade de carreira de realizadores, tão logo emplacam um primeiro filme de sucesso.

Esse é o caso de Anita Rocha da Silveira e de “Medusa”, filme que será exibido presencialmente na abertura do 48° Festival Sesc Melhores Filmes, no CineSesc. Embora em desenvolvimento desde 2015, mesmo ano do lançamento de “Mate-me Por Favor” da diretora, o longa-metragem só conseguiu sair do papel e encontrar as telonas dos festivais em 2021, quando estreou na Quinzena dos Realizadores, em Cannes. O intervalo de seis anos, desde o início da produção até sua primeira exibição, é interessante porque é marcado por uma série de transformações político-sociais na realidade brasileira, do impeachment da presidência de Dilma Rousseff à eleição e o mandato de Jair Bolsonaro no cargo, que se refletem no filme.

O segundo longa-metragem da cineasta não só reconhece as mudanças de paradigma no contexto social brasileiro como realiza uma evolução nítida dos temas tratados por seu filme antecessor. Entre “Mate-me Por Favor” e “Medusa” coincide, por exemplo, a abordagem da opressão ao corpo feminino em primeiro plano, com Silveira mantendo um aparato bem definido na estilização pelas vias simultâneas da comédia e do horror.

No primeiro, esse trabalho se dá de forma direta, acompanhando os efeitos de uma série de feminicídios em um grupo de garotas de um colégio católico na Barra da Tijuca, com a percepção dessa dura realidade se manifestando como força alegórica maior da produção. Já “Medusa” percorre um caminho quase parecido, mantendo a ambientação no colégio, mas de olho em vieses diferentes sobre as relações, em especial, relações entre as próprias mulheres.

Apesar de manter o foco na alegoria maior da narrativa – dessa vez envolvendo o mito de Medusa pela ótica da ira esgarçada pela opressão – Silveira demonstra aqui uma ambição bem maior em relação ao mundo construído. Além da sátira nas canções originais (compostas pela própria diretora), chama a atenção também a composição de ambientes, do hospital onde grande parte da ação transcorre a toda a carreira de influenciadora da amiga da protagonista, que brinca bastante com os perfis de conteúdos da área pela ótica evangélica – coroados no “tutorial” de como esconder um hematoma no rosto com maquiagem, por exemplo.

Tudo ilustrado por uma bela paleta de cores berrantes, que segundo a cineasta nutriu forte inspiração dos giallos (mistura de suspense e romance policial italiano) de Dario Argento, a ponto de parafrasear uma cena de “Suspiria” no roteiro. Esse uso é crescente, até porque a investigação central desanda ao revelar a complexidade de opressões que cercam as personagens na história, das danças de acasalamento, até a maneira como a religião evangélica se impõe como grande ditadura moral para aqueles jovens.

A referência é fortuita também porque ilustra a potência simbólica do longa, um grande e literal grito sufocado da mulher na sociedade brasileira. Se “Mate-me Por Favor” era um pouco mais sutil nesse tratamento, “Medusa” tem como força maior a externalização do sofrimento que retrata, aproveitando-o como motor da trama e pontuando a narrativa de segmentos nesses momentos maiores de reconhecimento. É uma experiência extenuante por propósito, afinal, pois é do esgotamento com a realidade que Anita Rocha da Silveira entende ser a raiz da existência da mulher brasileira. Saber que seu filme tenha lutado e muito para terminar de ser viabilizado só acrescenta a essa proposta uma nova camada.

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