Toda vez que conta que é atriz, Ana Flávia Cavalcanti se emociona. Aos 36 anos, a performer, que acaba de finalizar a produção do curta Rã, garante ser, até hoje, muito forte a sua experiência como mulher negra e filha de empregada doméstica que consegue viver de arte – especialmente no cinema. “O audiovisual não escreve histórias para corpos como os nossos”, lamenta.
A necessidade de representações diversas dentro e fora da tela foi, justamente, o assunto que orientou o segundo seminário promovido pelo CineSesc durante o 45º Festival Sesc Melhores Filmes. Realizado na sexta-feira (12) com mediação da crítica Maria do Rosário Caetano, o encontro discutiu o tema “Olhares e Corpos Plurais: As Narrativas do Cinema Contemporâneo” e, além de Ana Flávia, contou com a participação de João Dumans, diretor de Arábia, Gustavo Pizzi, realizador de Benzinho, Alice Riff, diretora de Meu Corpo É Político e Eleições, Julia Katherine, atriz do longa Me Lembro Mais dos Corvos e diretora do curta Tea for Two, e Filipe Matzembacher, diretor de Tinta Bruta.
Cinema plural
Mais do que ter espaço como diretora e de ser representada no cinema, Ana Flávia alertou que é necessário fugir do estereótipo do diretor negro que só trata de questões de raça. “A gente pode falar sobre o que a gente quiser”. Observando a reprodução de um padrão nas produções cinematográficas, Julia Katherine também manifestou o desejo de que, em suas obras, os realizadores e realizadoras trans não sejam obrigados e obrigadas a somente problematizar relatos ligados à identidade de gênero. “Quero que o meu corpo e o corpo do homem trans sejam naturalizados dentro do nosso universo”, afirmou.
Sobre a representação de pessoas trans no cinema, Julia criticou os papéis de personagens trans interpretados por atores e atrizes cis. Em processo de produção de seu primeiro longa-metragem, a diretora citou a importância do trabalho de outros artistas e diretores trans, como Ariel Nobre, Galba Gogoia e Roberta Gretchen, mas confessou que ainda sente falta de ver, nas sessões de seus filmes, mais mulheres trans e travestis na plateia pois, para ela, “são poucas as oportunidades que as mulheres trans têm de falar da realidade em que a gente vive”.
No caso de Gustavo Pizzi, cujas obras sempre apresentam personagens femininas principais, o diretor explica não se tratar de uma escolha intencional, mas sim do fato de que são histórias pelas quais ele se apaixonou desde o começo. “Benzinho vem mais desse lugar da mulher dentro da sociedade”, contou. Lembrando o início da carreira, Pizzi afirmou que, em meados dos anos 90, era muito mais fácil captar verba para um filme se o enredo central girasse em torno de um homem, declarando ainda que, neste momento político de incertezas, é possível que alguns setores e vozes sejam novamente silenciados. “A gente tem que lutar muito para que isso não acabe.”
Políticas pela diversidade
As políticas de incentivo ao setor audiovisual foram outro grande tema de debate entre os participantes do seminário. Para Felipe Matzembacher, o apoio do financiamento e de projetos públicos refletiu positivamente na forma como a diversidade de corpos vinha sendo retratada no cinema. Segundo o diretor, um “caminho que começava a ser guiado”, mas que corre o risco de ser atacado devido a governos que demonstram estar em desacordo com os princípios da pluralidade.
Ponderando sobre como é viável pensar e produzir filmes políticos nos dias de hoje, João Dumans ressaltou que é necessário não ceder completamente à crença de que o cinema é capaz de consertar a sociedade. Para ele, o cinema é um lugar de encontros, e seriam essas trocas as verdadeiras responsáveis pelas nossas mudanças de perspectivas. “A política está em permitir que a nossa vida seja transformada de maneira real”, atentou.
Alice Riff, cujo primeiro documentário, Meu Corpo É Político, só pôde ser concretizado por conta de editais públicos e chamadas oficiais, revelou estar preocupada com a chance de que esta abertura a narrativas mais plurais esteja sob ameaça. “As políticas públicas estão sendo mudadas para matar a nossa diversidade”, avaliou. Com a experiência de ter acompanhado as eleições de um grêmio estudantil para o seu último filme, Alice afirmou que testemunhou como o cinema pode ser uma poderosa ferramenta de diálogo. “A gente sabe da importância do cinema e é por isso que eles querem acabar com essas possibilidades”.
Maria do Rosário pontuou que o momento só não é mais desesperador por causa do conhecimento da nova geração, que aprendeu a fazer cinema mesmo em situações de precariedade. Ana Flávia defendeu, no entanto, que com ou sem dinheiro, essa é a hora de realizar projetos em conjunto e de estabelecer pontes com “a população que está à margem das nossas bolhas.” “Vamos fazer”, convocou ela.