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De Antonioni a Cronenberg, clássicos restaurados da programação ressaltam deslocamento do indivíduo na sociedade

Por Pedro Strazza

Os tempos de pandemia foram cruéis à humanidade por variadas razões, incluindo questões mais evidentes como da presença do espectro da morte ou das diferentes falências manifestadas pelo capitalismo tardio. Mas, em meio a essas questões, um efeito pouco explorado – mas muito sentido – é o do divórcio do indivíduo do espaço social. 

Com a rigidez da quarentena invertendo drasticamente a rotina da população da noite pro dia e o atraso da retomada pelo lento avanço da vacinação, os laços afetivos e lugares de convivência estabelecidos foram rompidos em caráter drástico em múltiplas camadas. Foi uma grande reorganização de relações que não necessariamente tem capacidade de acomodar todas as reminiscências, e daí se provém uma sensação de deslocamento – do indivíduo com o espaço, do indivíduo com sua esfera de relações e do indivíduo com sua própria posição.

Partindo do princípio de que o cinema também é uma arte de conexões inusitadas, a programação de clássicos restaurados que serão exibidos no CineSesc durante o 48° Festival Sesc Melhores Filmes reflete o estado atual do mundo a partir de posições muito particulares. Todos vencedores de prêmios importantes na história do evento, os filmes “Profissão: Repórter”, “A Rosa” e “Marcas da Violência” carregam entre si a semelhança de lidarem com uma mesma premissa básica de personagens em posição de estranhamento com o espaço que habitam, registrando ocupações artificiais que passeiam por temas de identidade, deterioração e violência.

É o caso por exemplo de “Profissão: Repórter”, que será exibido no festival às 17h30 do próximo domingo, 10 de abril. Descrito por seu diretor, Michelangelo Antonioni, como “um filme intimista de aventuras”, o longa-metragem estrelado por Jack Nicholson parte da situação inusitada de um repórter que, desiludido com a própria vida, se aproveita da morte de um traficante de armas parecido com ele para trocar de identidade. 

Vencedor do prêmio de Melhor Filme Estrangeiro pela crítica na 3° edição do festival, o filme é expansivo nos significados que adota como toda a obra de Antonioni, mas chama a atenção em especial pelo registro da figura “hollywoodiana” de Nicholson em espaços que não lhe parecem dizer respeito. Lida-se sobretudo com o isolamento do homem moderno nos idos da década de 1970, mas essa solidão não se nutre do espectro de relações do protagonista e vem do olhar de inadequação que o próprio toma para si. Somado à grande perseguição do jornalista que se dá na reta final, o “rapto” de identidade é visto como uma fuga emocional dos espaços, sacramentada nos lugares vazios em que a aventura se dá.

Sentimento parecido de fuga por ser encontrado em “A Rosa”, dirigido por Mark Rydell e marcado para passar no CineSesc no próximo dia 16 de abril, sábado, às 20h30. Eleito Melhor Filme Estrangeiro pelo público do festival em sua 7° edição, o filme tem ao centro uma cantora de rock que se encontra em crise com a vida corrida e lotada de apresentações. Sua resolução para esse conflito passa pela autodestruição típica do meio, é claro, com a personagem vivida por Bette Midler constantemente escapando da realidade por meio de amantes e crises emocionais com todos ao redor – incluindo seu agente, interpretado por Alan Bates.

Mas ainda que o drama se converta nos caminhos esperados de produções do tipo, os vários deslocamentos da Rose do título original encontram um contraponto muito forte nas gravações dos shows da artista. Mérito maior do trabalho do lendário diretor de fotografia húngaro Vilmos Zsigmond, que reúne um verdadeiro arsenal de colegas brilhantes do porte de László Kovács (“Sem Destino”), Owen Roizman (“Operação França”), Conrad L. Hall (“Butch Cassidy”) e Haskell Wexler (“Um Estranho no Ninho”) para construir visualmente a relação ao mesmo tempo íntima e escalafobética da cantora com seu público no concerto. Os belos enquadramentos e registro de cores da protagonista nestes momentos refletem uma dissociação de corpo e alma fascinante, destacando a presença e o pertencimento da personagem naquele espaço mesmo numa situação tão limite a ela, que trafega justamente na busca pelo abandono.

Por fim, há ainda “Marcas da Violência”, que ensaia um retrato muito forte das corrupções da violência na sociedade por meio de um personagem de vida dupla. Previsto para passar no CineSesc na sexta-feira, 22 de abril, à partir das  às 20h30, o longa acompanha um homem de família que certa noite impede um assalto (e consequente série de assassinatos) em sua cafeteria, ganhando projeção de herói nacional a ponto de se revelar sua existência passada como figura sinistra.

Dirigido por David Cronenberg, o longa venceu o prêmio de Melhor Filme Estrangeiro do público na 32° edição do festival por ressaltar aos olhos um cenário de esmagamento dentro de outro pacato – uma manifestação muito comum nos filmes do autor, patrono maior do body horror. Aqui, o personagem vivido por Viggo Mortensen revela ter escapado da própria identidade como matador cruel a ponto de lutar a todo custo para obliterar este passado, mas aos poucos este lado irrompe e contamina todas as relações que o cercam. O registro tem um peso notável se considerar o lançamento durante os anos da administração Bush nos EUA, marcados pela Guerra ao Terror como reforço dos valores norte-americanos, mas sua revelação gradual enxerga também a sobreposição dessas duas identidades do personagem principal.

Mais importante, essa relação começa com uma anulando a outra, mas no fim os pólos se invertem. O grande simulacro criado pelo protagonista o enjaula mais uma vez por conta da condição da qual não consegue escapar, e o espaço em que luta para viver fisicamente reforça essa conclusão.

A programação do festival ainda conta com os clássicos “Amor”, de Michael Haneke, e “Mephisto”, produção húngara de István Szabó. Vencedores do prêmio de Melhor Filme Estrangeiro segundo a crítica na 40° e 10° edição, respectivamente, ambos estão disponíveis gratuitamente no Sesc Digital até o fim do evento. “Amor” também será exibido na Sessão 35mm do CineSesc, dia 20/4, às 20h30.

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