Um dos aspectos mais fascinantes de se assistir a um filme é quando o espectador, de certa forma, se vê representado na história que está sendo narrada. Seja nas obras de ficção ou documentários, a experiência do outro pode manifestar uma catarse no público e transportá-lo a situações que foram ou são sentidas na pele todos os dias. A partir do momento em que o público se reconhece no relato alheio, é natural que algumas memórias sejam desbloqueadas e as lacunas da trama apresentada sejam preenchidas com a própria vivência ou percepção pessoal acerca do tema. Não deixa de ser uma forma de autoprojeção, em que o espectador deixa de ser um mero receptor e passa a contribuir com o filme, quase como um exercício de interação.
Quanto ao cineasta, ele assume um desafio narrativo: compartilhar uma memória particular e, utilizando os recursos cinematográficos, torná-la universal a ponto de que quem assiste à obra fique sensibilizado. Obviamente essa não é uma regra, é mais um convite para se conectar intimamente com o público.
Alguns lançamentos do cinema nacional em 2023 são bem-sucedidos em estabelecer esse vínculo, a exemplo dos documentários pessoais narrados em primeira pessoa. Um deles é “Retratos Fantasmas”, de Kleber Mendonça Filho. O filme, dividido em três partes, propõe um resgate da história sociocultural de Recife, com enfoque na existência dos cinemas de rua, locais que antes eram amplamente frequentados e que, com o tempo, foram cedendo o seu espaço para outras atividades, como igrejas e centros comerciais.
O diretor analisa esse fenômeno de transformação da paisagem urbana, partindo de sua infância no apartamento localizado no bairro Setúbal, onde produzia filmes caseiros, até traçar o mapa sentimental de uma Recife cujos cinemas foram sendo gradualmente apagados. De diversos cinemas de rua retratados no documentário, somente um, o São Luiz, resiste e permanece ativo. Com arquivos pessoais e rica pesquisa de imagens, “Retratos Fantasmas” é narrado com um misto de nostalgia e frustração, mostrando o efeito devastador do tempo na substituição de locais de formação social e cultural em espaços privados que priorizam o capital.
O filme, escolhido como representante do Brasil no último Oscar, joga luz sobre Recife, mas as transformações dessa natureza se estendem a muitas cidades do país. A título de comparação, dados da Ancine (Agência Nacional de Cinema) indicam que em 2022 foram contabilizados 370 cinemas de rua no Brasil, o que representa 10,8% do total. Em outros termos, o espectador que acompanha “Retratos Fantasmas” obviamente não precisa ser recifense para ser impactado com a problemática da extinção de cinemas de rua, sendo este, portanto, considerado um relato de caráter universal.
“Incompatível com a Vida”, de Eliza Capai, é outro documentário intimista e narrado em primeira pessoa que foi lançado nos cinemas no ano passado. A partir do registro de sua gravidez, a diretora aborda outras seis mulheres que tiveram vivências parecidas à sua, criando um potente coral de vozes que refletem sobre o direito à vida, luto, gestação de risco e políticas públicas no Brasil. Em um registro extremamente corajoso, Capai abre as portas de sua casa e divide com o público a sua dor e fragilidade de quando recebeu o diagnóstico sobre uma malformação que tornava o seu bebê incompatível com a vida, com poucas chances de sobreviver.
Foi no cinema, filmando a própria experiência, que Capai encontrou uma maneira de lidar com a tristeza. O filme emocionou plateias por onde passou, e conquistou o prêmio máximo no Festival É Tudo Verdade. Considerando outras estreias em 2023, “Incompatível com a Vida” compartilha o olhar para a maternidade com outros dois documentários igualmente comoventes: “Olha pra Elas”, de Tatiana Sager e “Eu Deveria Estar Feliz”, de Claudia Priscilla. O primeiro retrata um grupo de mulheres encarceradas que vivem longe dos filhos, enquanto o segundo filme mostra como mães de diferentes contextos sociais enfrentaram a depressão pós-parto.
Mais um exemplar do cinema nacional que documenta o seio familiar é “Bem-vindos de Novo”, longa de estreia do diretor Marcos Yoshi. O filme mostra a intimidade de uma família que passa por uma complexa reconstrução afetiva após o retorno dos pais do Japão, para onde o casal foi trabalhar. Seus três filhos – incluindo Marcos – ficaram aos cuidados dos avós, e o documentário mostra o reencontro da família, que ficou marcada pela necessidade de garantir o sustento e o desejo de permanecer unida.
Evidentemente, “Bem-vindos de Novo” é um documentário de ordem pessoal, mas ao mesmo tempo, é o relato de muitas outras histórias de famílias deslocadas por causa da imigração na busca e tentativa de uma vida melhor. Na construção do filme, Yoshi alterna imagens atuais dos primeiros anos dos pais de volta ao Brasil com vídeos domésticos de sua infância e adolescência, períodos em que teve de lidar com a ausência deles.
Ainda sobre documentários que retratam imigração e família, “Marinheiro das Montanhas”, de Karim Aïnouz, também foi exibido nos cinemas no ano passado. O filme se apresenta como uma espécie de diário de bordo filmado na primeira ida do diretor à Argélia, país de origem de seu pai. Entre registros da viagem, filmagens caseiras e fotografias de família, o longa é uma busca pelas suas origens familiares, e mostra a história de amor dos pais de Karim, a Guerra de Independência Argelina, memórias de infância e os contrastes entre Cabília – região montanhosa da Argélia – e Fortaleza, cidade natal do diretor e de sua mãe, Iracema.
Junto aos documentários intimistas e narrados em primeira pessoa, o blog também listou documentários biográficos que foram lançados nos cinemas em 2023. Todos esses títulos foram elegíveis para o 50º Festival Sesc Melhores Filmes, e os mais votados pelo público e pela crítica integram a programação do evento que vai acontecer entre os dias 3 e 24 de abril.