De acordo com o Censo do IBGE de 2010, há 305 etnias indígenas no Brasil, falantes de 274 línguas, somando uma população de cerca de 900 mil pessoas. Os modos de vida dos povos originários, ainda que não sejam indistintos ou generalizáveis, são diferentes da forma não-indígena de ocupar o território e de se relacionar com este – e com os seres humanos e não-humanos que nele habitam. No entanto, grande parte dos brasileiros e brasileiras ainda desconhece as diversas culturas que compõem nosso país. Ao nos aproximarmos delas, somos convidadas e convidados a refletir sobre o nosso lugar no mundo e sobre como nos relacionamos entre nós e com o planeta.
Desde a sua retomada nos anos 1990, o cinema brasileiro tem ajudado a construir uma ponte entre a imensa população dita “civilizada” (com muitas aspas) e os diversos povos que ainda resistem, muitas vezes em regiões distantes das grandes capitais. Importantes produções como, por exemplo, as ficções Brava Gente Brasileira, de Lúcia Murat, Xingu, de Cao Hamburger, Uma História de Amor e Fúria, de Luiz Bolognesi, e os documentários Iracema – Uma Transa Amazônica, Jorge Bodanzky e Orlando Senna, As Hiper Mulheres, de Takumã Kuikuro, Leonardo Sette e Carlos Fausto, e Piripkura, de Mariana Oliva, Renata Terra e Bruno Jorge, jogam luz ao cotidiano de povos brasileiros invisibilizados e convidam à reflexão sobre os vários problemas que ainda enfrentam.
É o que propõe também a Faixa Especial Abril Indígena, dentro da programação do 47º Festival Sesc Melhores Filmes, com a exibição de duas produções e um debate sobre o tema. O objetivo é proporcionar uma nova abertura ao espectador, a partir do cinema, abrindo os nossos olhos e fazendo-nos buscar sentir na pele o quanto a nossa estrutura político-social e cultural resiste em cumprir à risca algo simples como Constituição de 1988 que concede a esses povos originários o simples direito de viver onde nasceram.
Martírio, produção lançada em 2014, pode ser considerado um dos melhores filmes representantes dessa questão. O documentarista, indigenista e antropólogo franco-brasileiro Vincent Carelli esteve no Mato Grosso do Sul em 1988 e conheceu de perto a luta para se manterem nas suas terras do povo guarani-kaiowá. O inimigo gigante: o agronegócio crescente, poderosos donos de fazenda e grandes latifundiários.
Assim, Carelli retorna à região 15 anos depois e o que vemos é o resultado verdadeiro de um massacre. Por tentarem resistir, os guarani-kaiowá foram assassinados e constantemente, sem descanso, ameaçados em suas próprias terras. O discurso oficial dos “proprietários” de terra é absurdamente cruel e sanguinário: a terra é nossa, os indígenas são invasores e, portanto, criminosos. Logo, como inimigos declarados, devem ser mortos como bichos.
Martírio mostra como o Congresso Nacional não sabe nem receber representantes indígenas para um diálogo, tamanho é o lobby do agronegócio para que eles não sejam nem vistos como cidadãos. Vemos enraizados todos os tipos de valores que a cultura de parte da sociedade sustenta em suas vidas. A certa altura um deputado diz: “Eu vou começar a dar o direito (aos fazendeiros) de se defenderem com armas”. Um outro brada a plenos pulmões: “Invasão dos índios, só se passar por cima do meu cadáver!”. Mas a pergunta fica: quem está invadindo a terra de quem?
Um por todos, todos por um
Se no filme de Vincent Carelli, Tatiana Almeida e Ernesto de Carvalho, a nossa identificação é pelo coletivo, através dos guarani-kaiowá como um todo, a outra produção da Faixa Especial Abril Indígena, vamos acompanhar apenas um homem, Carapiru, da etnia awá. Após escapar do massacre de seu grupo familiar em 1977, ele perambula sozinho pelas serras do Brasil central até ser capturado, dois mil quilômetros de seu ponto de partida, dez anos depois. Levado para Brasília pelo sertanista Sydney Possuelo, torna-se manchete nacional e centro de polêmica criada por antropólogos e linguistas quanto à sua origem e identidade.
Seu diretor Andrea Tonacci (1944-2016) não filmava havia 30 anos e retornou com o que os críticos consideram uma obra-prima. Serras da Desordem, de 2006, desafia uma classificação muito rígida de gênero, o filme passeia entre o documentário e a ficção. O diretor faz um percurso entre muitos registros do documentário, do etnográfico ao ensaístico, mas ao mesmo tempo, faz uso dos recursos da ficção como a reencenação de alguns episódios antigos vividos por Carapiru. (Essa encenação feita pelos próprios indígenas também aparece em A Última Floresta, de Luiz Bolognesi, selecionado no último Festival de Berlim).
O debate Histórias Indígenas e o Brasil em Ruínas vai refletir de que maneira tais filmes dialogam com a nossa realidade atual. O evento vai reunir o ambientalista e escritor Ailton Krenak, a montadora Cristina Amaral e o documentarista Vincent Carelli para debaterem os fluxos possíveis trazidos por essas obras e a construção de mundos fora da lógica usurpadora dominante, com mediação da antropóloga e documentarista Júnia Torres. Esse encontro ficará disponível no canal do CineSesc no YouTube a partir da próxima quarta-feira, dia 28 de abril, às 20h.
E, ainda, para quem se interessar por este tema, a programação do 47º Festival Sesc Melhores Filmes, compõe na sua programação um dos grandes destaques brasileiros do ano passado: o premiado A Febre, de Maya Da-Rin. O longa de ficção mostra Justino, um indígena que trabalha como vigilante num porto de cargas e mora na periferia de Manaus. Sob o sol escaldante e as chuvas tropicais, ele se esforça para se manter concentrado no trabalho. Com o passar dos dias, Justino é tomado por uma febre forte que tem a ver com um resgate inconsciente das suas raízes.
Seja na ficção ou no documentário, a dor dos nossos povos representa o nosso fracasso como nação – uma dor que o cinema transforma em conexão emocional com aqueles ainda abertos e dispostos a entender e se colocar no lugar do outro.